Conversamos com Ésio Cruz. Sua história é marcada por um contraste profundo: do prestígio da farda ao impacto psicológico do cárcere. Ex-policial militar do Ceará e ex-sargento do Exército Brasileiro, ele relata com riqueza de detalhes a experiência de quem um dia esteve de um lado da lei — e de repente se viu do outro.
Com um olhar crítico e, ao mesmo tempo, profundamente humano, ele revisita memórias, descreve bastidores do sistema policial e penal e expõe feridas que muitas vezes permanecem escondidas atrás dos muros das penitenciárias.
A chegada da viatura
Tudo começa na noite do dia 7 de fevereiro de 2025 quando Ésio foi acusado de descumprir uma medida cautelar de afastamento de 300 metros de um renomado advogado da cidade : a viatura acionada pela vítima, a abordagem rápida, a escuta seletiva e a condução do suspeito. Ele ainda teria chamado o Sargento da viatura de "cabeção", o que foi interpretado como "desacato".
“Levaram-me o uniforme, mas deixaram o melhor: o conhecimento”, diz Ésio, resumindo a virada drástica em sua trajetória.
Segundo ele, a prática recorrente em muitas ocorrências é ouvir a vítima, pouco ouvir o acusado e conduzi-lo algemado à delegacia, onde já encontra olhares de julgamento. “Na maioria das vezes, não se trata de crime, mas de simples desentendimentos do dia a dia. Só que o peso da acusação cai inteiro sobre quem está na cadeira do acusado”, relata.
Fraude processual e arranjos de bastidores
Ésio narra episódios de bastidores que revelam o funcionamento de um sistema muitas vezes automatizado, sem espaço para interpretação jurídica adequada. Ele critica a ausência de disciplinas como hermenêutica jurídica na formação dos policiais e aponta práticas de “arrumadinhos” para proteger agentes de acusações de abuso de autoridade.
Um episódio marcante envolve um acidente dentro de uma cela, que acabou sendo atribuído ao preso — ele próprio — como forma de blindar os agentes responsáveis. “Foi aí que entendi que, quando você vira o acusado, sua versão vale menos do que qualquer ‘fé de ofício’”, desabafa.
Audiência de Custódia: entre a lei e a realidade
A audiência de custódia, que deveria garantir direitos e evitar abusos, aparece no relato de Ésio como mais um ritual onde a palavra do policial vale mais do que os hematomas no corpo do preso. “Quando o juiz pergunta se houve violência, e o preso diz que sim, os policiais dizem que ele se bateu sozinho no xadrez. A palavra deles é tida como verdade absoluta”, explica.
O choque do cárcere
Ao descrever a chegada à penitenciária, Ésio revela a dimensão emocional desse momento. “O coração do preso de primeira viagem chega a 120 batidas por minuto. O chão some dos pés”, diz. A revista corporal, os gritos dos policiais penais, a fila para a biometria e a pressão sobre facções criam um cenário brutal.
Ele compara a cena ao seu primeiro contato com um quartel militar, ainda adolescente. “A voz de comando era a mesma. Mas agora, eu estava do outro lado.”
Reflexões no cárcere
Entre os muros, Ésio também ouviu histórias. Em uma delas, um preso lhe perguntou o que deveria aconselhar ao filho para “ser alguém na vida”. A resposta de Ésio foi direta: citou as palavras de um comandante da Força Aérea, que afirmara publicamente que não há como enriquecer honestamente trabalhando para o Estado. “Eu disse a ele que talvez fosse melhor ensinar o filho a empreender, a construir algo próprio.”
O Alvará e a reconstrução
O momento da liberdade é descrito como um turbilhão de sensações: alívio, desconfiança e medo. “Cada passo em direção à porta da cela carrega o peso do passado, mas também a promessa de um recomeço”, afirma.
Para Ésio, a experiência no cárcere não é apenas uma lembrança, mas uma ferida que cicatriza lentamente. “Vestir a farda me deu autoridade. Perder a liberdade me deu consciência.”
Uma voz de dentro do sistema
Hoje, Ésio trabalha na construção de um livro, no qual transforma sua trajetória em testemunho e reflexão sobre falhas estruturais e humanas do sistema penal brasileiro. Ele se propõe a levantar questionamentos que poucos têm coragem de fazer publicamente.
“Eu não conto isso por vingança. Conto para que a sociedade entenda que, às vezes, quem está do outro lado das grades não é um monstro — é alguém que também já serviu o próprio sistema que agora o condena".
Carlos Jardel