A relação entre os poderes de Estado, reza a lenda política, é boa para a democracia quando se dá em termos harmônicos e independentes. Ninguém está acima de ninguém etc etc. Uma regra teórica que costuma oferecer problemas sérios quando não observada, especialmente da parte do parlamento, valendo como exemplo recente o que aconteceu no Congresso com as derrotas sofridas pelo governo Lula em votações que o Executivo considerava importantes para sua política econômica.
Aqui no Ceará, quinta-feira passada, deu-se o outro lado da questão, reforçando a importância para o Palácio da Abolição de ter no comando da Assembleia um deputado — Romeu Aldigueri (PSB), no caso — da mais absoluta confiança do governador, que antes era seu líder na Casa, inclusive. Uma manobra legítima dele de última hora, apoiado por Salmito Filho (PSB), desconcertou a oposição e, como efeito indireto, abriu caminho para uma aprovação tranquila do projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2026.
O que se sabia é que a oposição chegou ao Legislativo naquele dia preparada para uma longa discussão sobre o texto encaminhado pelo governo, com questionamentos a vários pontos. O discurso previamente ajustado apontava para a pouca atenção com determinadas obras, lançava luz em indicações de que o caixa público estadual anda com problemas e pretendia colocar em destaque outros aspectos mais que calharia discutir no contexto do clima pré-eleitoral que domina o ambiente.
Porém, Aldigueri surpreendeu ao abrir a sessão apresentando manifesto de apoio ao governo brasileiro diante da crise com os Estados Unidos pelo anúncio de taxação dos nossos produtos pelo presidente Donald Trump, em 50% além da alíquota já aplicada normalmente. O documento precisaria ser aprovado pelo plenário da Assembleia, e o foi, mas antes deu-se uma acalorada discussão que acabaria tomando quase todo o tempo dos deputados naquele dia.
Acontece que a tentação era muito grande para deputados do PL como Pastor Alcides e Carmelo Neto, citando os mais referenciais e que, claro, entraram com muito mais disposição no debate, de fundamento ideológico. Ambos, reforçando a linha de que o presidente Lula é o verdadeiro culpado pela adoção de medidas prejudiciais ao Brasil pelo presidente Trump. Os oito votos contrários ao manifesto, cujo conteúdo apartidário e até apolítico do texto justificaria uma rara unanimidade em torno dele, expõem o tamanho do problema que representa termos um Fla x Flu permeando o debate político cotidiano de maneira permanente.
A própria articulação política do governo teria sido um pouco surpreendida, segundo a coluna apurou, pela novidade de última hora introduzida por Aldigueri, mas gostou bastante do que aconteceu. A energia que os parlamentares oposicionistas tinham reservado para uma discussão longa sobre a LDO acabaria sendo gasta no esforço de tentar cravar no governo de Lula a responsabilidade pela medida aplicada contra o Brasil pela Casa Branca.
Consequência, para alívio da turma governista: tranquila aprovação do texto que, dentre outras coisas, prevê R$ 4,5 bilhões de investimentos em infraestrutura no próximo ano, registrando-se os inevitáveis 9 votos contrários. A parte da oposição menos ideologizada, que vem do PDT e é ligada ao ex-prefeito Roberto Cláudio, ainda queixou-se do pouco debate que precedeu a votação, mas os bolsonaristas já não tinham mais energia. Tinham gasto toda no esforço inócuo de convencer os colegas de que fazia sentido a medida de Trump já que entre os objetivos estava deixar o líder político deles em paz.
Guálter George, O Povo