Por Inácio Santos
De acordo com o calendário litúrgico da igreja, a quaresma é o tempo relativo aos quarenta dias que precede a semana santa.Tendo início logo após o carnaval, na quarta-feira de cinzas. Reza o catecismo cristão, que a quaresma tem relatividade aos dias que Jesus isolou-no deserto para preparar-se para a sua missão. Período em que foi tentado por Lúcifer, o Anjo Mal, que o supunha debilitado, mas que se deu mal, sendo rechaçado por Cristo, de volta aos quintos dos infernos, de onde nunca deveria ter saído. A quaresma é guardada pelo povo cristão, como uma preparação para a paixão e morte do Senhor. Bem como, para o advento da páscoa, trazendo consigo uma gama de peculiaridades tradicionais, indo da abstenção da carne as quartas e sextas-feiras, vias-sacras, afastamento de diversões mundanas. Tipo: Festas, danças, e coisas do gênero.
Nos dias atuais, com a modernidade e outros fatos convergentes, a quaresma esta perdendo seu encanto e religiosidade. Somente os mais velhos resistem, mantendo as regras e a tradição, enquanto a juventude desconhece e atropela literalmente, quase não havendo distinção para qualquer outra ocasião do ano. No início dos anos setenta nosso Camocim era bem menor e os acontecimentos, eventos, e inaugurações causavam impactos bem maior. Foi nesse ínterim que o empresário Tarcísio Melo inaugurou a panificadora e confeitaria Litorânea, no mesmo lugar ainda hoje, Rua da Independência com 24 de Maio, Praça Pinto Martins. Tal fato, causou grande reboliço, visto que, até então só tínhamos pequenas padarias, os padeiros entregavam pão de porta em porta. A tal panificadora era moderna, balcões de vidros, estufas, etc...
A inauguração foi uma festa, a panificadora um sucesso. Com a proximidade da semana santa, o empresário T. Melo, resolveu contratar o grupo de Teatro Amador Pinto Martins, para fazer uma apresentação na Quinta -feira santa (Sexta -feira não poderia, pela grandeza do dia), a dita apresentação, seria um quadro vivo da Ultima Ceia. Que deveria acontecer na marquise do prédio. Embaixo na rua, as pessoas assistiriam. Contrato feito, tudo acertado, começaram os ensaios: Cenário, roupas, divulgação, etc... Tudo programado para que na hora H, nada faltasse. Fizemos uma reunião com o grupo, para definir papéis. Como na última Ceia, o quadro é totalmente masculino, pois, foi quando Jesus reuniu-se com seus doze discípulos para a Ceiar, anunciou que ia ser traído, e conseqüentemente morto, mas, que ressurgiria dos mortos no terceiro dia. Por tal motivo não havia papel para as moças do grupo, apenas iam ajudar nos preparativos.
Para representar Jesus foi escolhido Roque, embora Roque fosse novato no grupo, sem experiência, este seria seu batismo ( primeiro papel ) o seu tipo físico era ideal. Alto, cabelos compridos, barba, ninguém melhor, pelo menos na aparência. Aí veio o resto da cambada: Eu, Totó, Janai, Paulo Rosendo, Zé Carlos, Ângelo Cardeal, Zé Osmar, Tadeu, Josivan, Randim, Arnaldo, Cláudio, e Evamar, totalizando treze. Dizem que o esoterismo do número treze, deve-se a esta somatória da última Ceia, onde estavam: Jesus Cristo, Simão Pedro, André, Tiago maior, Tiago menor, João, Mateus, Felipe, Bartolomeu, Thomé, Judas Iscariotes, SImão o zelota.
Assumimos os nossos papéis, com destaque para Roque (Jesus), Totó (Judas), eu João, que fica ao lado direito de Cristo, isto para auxiliar Roque que estava nervoso, por ser estreante. Chegou o grande dia.Tudo pronto e ensaiado. No inicio da tarde fomos para o prédio da panificadora, fazermos os últimos acertos: locais, cenários, posições, etc... Inicio marcado para as dezoito horas. Dona Maria esposa de Tarcísio (grande dama) se esmerou, com ajuda das meninas, nas roupas de época, maquiagem, perucas, e outros apetrechos que a cena pedia. A mesa preparada, imitando o quadro de Leonardo Da Vinci. Pão, vinho, frutas, legumes, sem faltar o peixe, um belíssimo e apetitoso pargo, assado inteiro no forno. Tudo pronto. Luzes, câmera, ação. E lá fomos nós! Embaixo, uma plateia imensa se comprimia, na estreita rua 24 de Maio, todos olhando avidamente pra cima (marquise).
Entramos, colocamos-nos em nossos lugares. Cristo (Roque) no centro da mesa, seis do lado direito, seis do lado esquerdo. Demos continuidade, tal qual, foi ensaiado. Roque nervoso. Mas eu que era veterano, ali do lado, ia dando uma ajuda, a coisa andava maravilhosamente. Na hora da dúvida, quando Cristo disse: - Asseguro-lhes, que um de vós me há de trair. Todos nós (apóstolos) inquirimos: Serei eu Mestre? - Judas (Totó) sentindo na própria pele sua traição, levanta-se bruscamente, e abandona o local.
Na hora solene da Consagração do pão e do vinho (corpo e sangue de Cristo). Roque pega o vinho coloca na taça e diz - ‘‘Este é meu sangue que é derramado por vós, tomai e bebei’’. Em seguida passa o cálice para o apóstolo da direita, após, para o da esquerda.Todos bebem do vinho. acontece que até no terceiro, ainda havia vinho na taça, o resto só fazia encenação, vinho que é bom nada. A mesma coisa com pão, partiu, abençoou, e distribuiu. Para os últimos só chegava uma migalha. Com o peixe, tudo se repete, para os últimos uns pedaços de tomate e folhas de alface. O público comovia-se lá embaixo. Chegou a hora do lava pés, onde Cristo pega uma bacia com água, num gesto de humildade, lava os pés de cada discípulo, mostrando que devemos sermos humildes com nossos semelhantes.
Deixemos pois, Cristo (Roque) lavando os pés de seus discípulos, voltemos umas poucas horas atrás. Ângelo Cardeal trouxe escondido dentro da mochila um litro de serrana (cana), embora houvesse uma regra estabelecida, que ninguém podia beber até o término da apresentação, pois logo após o evento, Tarcisio havia liberado uns garrafões de vinho, e salgadinhos para a comemoração. Acontece que Ângelo, Paulo Rosendo, e mais uns dois, que agora me falha a memória os nomes, de vez em quando, com pretexto de irem ao banheiro, tomavam uma golada da bendita, certo é que, já estavam truviscados, mas como, não iriam falar, somente permaneceriam sentados, não deu para fazer nada, foi o jeito aceitar. Paulo Rosendo interpretava Simão, era o último do lado esquerdo.
Quando Roque (Cristo) lavou os pés dos apóstolos da direita, e foi para os da esquerda, começou pelo último, exatamente Paulo Rosendo. Este já meio grogue, assim que Cristo (Roque), ajoelhou-se para o ato. Paulo indignado, a meia voz, vociferou: - Cristo fí duma égua, manda bebida e comida pra cá! A taça quando chega aqui está vazia, pão, nem uma migalha, peixe nem sinal, só vem tomate e folha. Eu não sou camaleão, Cristo fí duma égua! Manda vinho, pão, peixe, que tou com fome morrendo de fome. Roque, tremendo de nervoso rebatia: - Paulinho, calma! Cala a boca, o pessoal pode ouvir! Pelo amor de Deus, cala essa boca. Ao que Paulo continuava. –Cala a boca nada, seu Cristo fí duma égua, tu está comendo do bom e do melhor, aqui pra mim que sou o último, só vem folha, tá pensando que sou camaleão? Eu quero é comida, pão, peixe!
Roque saiu para o próximo, Paulo não calava a boca, pedindo peixe, vinho, pão. Mesmo assim, o quadro foi um sucesso, o público não notou, (graça a Deus), após a apresentação, festejamos com muita comida ( pão, peixe, vinho) etc... Paulo se esbaldou, bem como, todo grupo. Tudo isso só serviu para todos nós darmos boas risadas.
Hoje, quando vejo esta juventude transviada, nas drogas, na violência, e outras aberrações, tenho saudades da nossa época, em que bebíamos as nossas serranas, nossos vinhos, fazíamos nossas estrepulias, mas sempre alavancados em movimentos culturais, respeitando, conservando as tradições e o folclore, como ponto de referência de nossa própria identidade.