RUA DA GAVETA
Por Inácio Santos
Início dos anos setenta. Época em que o mundo se me desabrochava, revelando-se num fantástico nascedouro de novidades e mistérios, que iam desvendando-se no transcorrer do dia-a-dia.
Tinha eu oito anos, vivendo nesta poética cidade litorânea onde há pouco tempo chegara energia elétrica - Paulo Afonso - Ainda não havia, pelo menos aqui, televisão, vídeo cassete, vídeo game, computadores, celulares, e outras tantas parafernálias da atual moderna tecnologia. De contrapartida, Camocim oferecia um clima ameno, um mar (rio) sem poluição, além do porto que funcionava a contento com atracações de navios, o trem de cargas e passageiros que de tardezinha ao chegar a estação, proveniente da capital, sempre proporcionava um verdadeiro espetáculo.
Era pois neste mundo, esbanjando o fulgor da juventude, concomitante a puerilidade dos meus oito anos, que vejo-me trancafiado nas dependências do Grupo Escolar José de Barcelos - atual Prefeitura - Quando a sineta tocava a tardinha anunciando o final das aulas. Tal qual um vespeiro, a molecada corria desabaladamente rumo a saída. Na época não existiam prédios ao derredor, a praça não era cimentada. O lugar logo se transformava em vários campinhos para uma gostosa pelada. Eu geralmente participava sempre atento as horas para não chegar em casa muito tarde após o jogo. Comumente nesta hora a caixa d’água sempre transbordava. Era uma verdadeira festa. Ficávamos de calção - já vínhamos prevenidos - tomávamos um delicioso banho.
Logo em seguida traçava meu rumo, sentido Vila Falcão - Rua José de Alencar - na época uma ruazinha estreita, de terra. Eu adorava pular saltitando de calçada em calçada, pois eram irregulares, umas altas, outras baixas, no final da vila entrava na rua Humaitá. Ao cruzar com a Rua Alcindo Rocha, existia uma abertura que se adentrava no sentido vertical, indo sair já quase na rua da Independência, na qual eu residia. Era minha predileção utilizar-me deste atalho chamado Rua da Gaveta. Nome sabiamente posto sabe-se lá por quem, talvez pela infalível sabedoria popular. Quando falo sabiamente, é porque a dita rua não era mais que uma estreita passagem, no muito uma viela.
Dava a nítida impressão de uma gaveta incrustada entre estas nobres ruas acima citadas. A Rua da Gaveta foi com certeza a primeira favela que conheci, nem favela poder-se-ia dizer, mas sim, uma mini-favela que ia se estreitando, até que no final, era preciso passar por dentro de um barraco para se chegar ao intento. Aquilo me encantava e seduzia. Não via a hora fazer este trajeto todos os dias passando pela rua da Gaveta.
No entanto veio o progresso trazendo no bojo calçamento, alinhamento das ruas, fechando de uma vez por todas minha querida Gaveta. Restou apenas saudade. Quem te mandou gaveta pretensiosa! Encaixar-te num lugar ao qual não pertencias?
Inácio Santos