Por Inácio Santos
Quando participei do III encontro denominado Povos do Mar - Realização SESC/FECOMÉRCIO - no Hotel Ecológico de Iparana – Caucaia - Conheci mais amiúde alguns dos Mestres da Cultura Cearense - título merecidamente outorgados a pessoas simples: Pescadores, artesãos, poetas, repentistas. Pessoas que através de seus exemplos muito contribuíram para a formação moral, cultural, ética, em prol de suas comunidades.
Presentes a vivência - Roda de Conversas - estavam: Mestre Assis Honorato – Capataz da Colônia Z-12, representante da comunidade dos Estevão; Mestre Antonio Eduardo – filho da precursora na arte com areias coloridas em garrafas de vidro, da praia de Majorlandia; Mestre Chico Capoeira – cantador e animador do grupo de coco raízes do Iguape; - Mestre José Oliveira – Mestre do tesouro vivo das culturas cearenses. Fui como palestrante, dividi a mesa com os quatro acima citados, confesso que fiquei titubeantemente confuso, não por não saber minha fala, mas sim, pela enorme simplicidade e carisma que emanava de suas presenças.
Durante os cinco dias de encontro, tive oportunidade de conhecê-los melhor. Um deles, Mestre Assis, nos intervalos dos trabalhos sempre vinha ao meu encontro. Era um exímio contador de estórias. Numa delas contou-me que quando mais jovem, trabalhou embarcado em navios como estivador, que deu porto várias vezes em Camocim. Disse-me mestre Assis com toda riqueza de detalhes, que nos vários portos do Brasil onde os navios em que trabalhou atracavam, o porto de Camocim destacava-se nos atributos: – Movimentação, comércio, escambo, diversão. Mestre Assis citou alguns dos vapores em que trabalhou – Aratanha, Rio Piancó, Camocim, entre outros. Geralmente os navios traziam mercadorias variadas. Cereais, enlatados, secos e molhados, bebidas. Retornavam abarrotados do nosso precioso sal.
Na ânsia de querer saber mais sobre à época, instigava Mestre Assis, que não se fazia de rogado. Disse-me ele que numa dessas atracagens, geralmente demoravam uma semana, dependendo da carga do navio ( tonelagem ). Mestre Assis a exemplo dos demais companheiros, após duro dia de trabalho, a noite ficavam livres, - a noite era uma criança - termos do próprio - Visto que, o cais do porto era só animação: Jogos de azar, caipiras, jogo da pretinha, bares, botecos, botequins, servindo desde café com tapioca ao aguardente de cana ( serrana ). Porém o mais apetitoso eram as secretárias da beira do cais, moças dama ou da vida, prostitutas, quengas, raparigas, que com suas roupas insinuadoras e provocantes, esgueiravam-se como cobras, num requebro lascivo e sensual, prometendo o céu em forma de prazer aqueles homens rudes pelo trabalho pesado, mas de almas carentes de afeto e amor. Complementou Mestre Assis, que esta movimentação era extensiva a toda área portuária do cais, incluindo o famoso bairro dos coqueiros onde ficavam os tradicionais cabarés, com suas atrações: Bebidas, prostitutas, madames, cafetões, findando em pequenos cubículos com catres imundos, onde após a paga, o sexo era cosumado seguido de latente gozo.
Disse ainda Mestre Assis, que dentre eles (estivadores) existia um maranhense conhecido por Pedrão. Cabra corpanzudo e destemido, gabava-se de não ter medo de nada deste mundo, nem do outro também, que fosse sobrosso de alma, visagem, ou coisas do tipo, pois confiava tão somente em sua coragem, força, destreza, e na sua inseparável lambedeira de vinte e quatro polegadas (faca peixeira).
Corria um boato que ali naquelas imediações após a meia-noite, estava aparecendo um bicho atacando as pessoas, muitos dos que se aventuraram foram atacados, por pouco escaparam após desabaladas carreiras. Todos juravam unanimemente a tal aparição ser um lobisomem. Certo é que, ninguém aventurava-se nas horas ermas por ali passar, quando se ia, ia-se de turma, armados com facões, paus, pedras. Caso é que, Pedrão tinha um chamego com uma quenga, que era lotada num cabaré no bairro dos coqueiros. A noite Pedrão tomou um banho, vestiu sua melhor roupa, pôs na cintura a inseparável lambedeira, como ele gostava de chamar ( faca tipo peixeira ) tomou uns goles da famosa serrana no botequim da chichica, indo em seguida, saciar a sofreguidão de seus desejos nos braços de sua amada. Os companheiros desde cedo o advertiam: - Olha o lobisomem! Dizem que o bicho é valente! Pedrão apenas respondia: - Ele que venha!
O cabra era mesmo destemido, pois não é que foi sozinho. Desfrutou de tudo, bebeu umas cervejas, dançou maxixe, gafieira, por fim terminou no muquifo com sua amante num gozo desvairado e reconfortante. Pedrão depois de saciado atinou para as horas, era madrugada, tinha que chegar ainda com tempo para descansar, pois a lida era pesada e começava logo ao raiar do dia. Despediu-se da dita cuja, saiu rumo as docas, era um trajeto curto, mas Pedrão resolveu encurtar ainda mais, veio cortando por entre os trilhos. Na época não havia energia elétrica, a noite estava escura, porém Pedrão estava acostumado, conhecia o trajeto palmo a palmo. Vinha feliz assobiando baixinho, quando de repente ouviu vindo por detrás de uns vagões de trem ali parados, um barulho estranho. Parou, olhou, nada! Pensou: Talvez seja o vento, continuou seu trajeto. Agora o barulho vinha da parte frontal e aumentava cada vez mais. Pedrão nunca em sua vida ouvira coisa igual, parecia guincho de porco misturado com uivo de lobo. Pela primeira vez na vida Pedrão sentiu os pelos do corpo eriçarem-se. Uma raiva descomunal dele se apoderou. Pedrão fincou os pés no chão e gritou: - Seja lá o que for! Pode vir!
O animal que Pedrão viu de relance, face a escuridão da noite, veio para cima dele com garras e presas para devorá-lo. Só que Pedrão não era cabra molenga, desviou-se com um salto das garras que vinham destinadas ao seu pescoço, mesmo assim atingiram seu peito, embora de raspão, destroçando o tecido da camisa, sulcando sua pele. O sangue brotou. Pedrão ficou cego de raiva, todo medo que pudesse existir desapareceu dando vazão ao ódio. Sacou da famosa lambedeira, tomou posição investindo numa acrobática, enfiou a faca no bicho. Pedrão sentiu o contato da peixeira ao entrar no referido animal. Num movimento rápido o golpeou diversas vezes. No fragor da contenda não soube quantas vezes o atingiu, nem o tempo que durou tal façanha. De repente ouviu um estarrecedor urro animalesco. O Lobisomem cambaleou e desapareceu na escuridão da noite até sumir por completo.
Pedrão estafado, ferido, se recompôs e prosseguiu. Ao chegar contou o acontecido para alguns colegas que ainda estavam acordados, outros acordaram, só acreditaram porque viram a faca suja de sangue, bem como, os ferimentos sofridos por Pedrão. Arranjaram lanternas, armaram-se, foram até o local, realmente viram marcas de sangue. Na manhã seguinte o assunto no cais não era outro, senão a estória de Pedrão e sua briga com o Lobisomem. Vinha gente de toda parte, olhar, indagar, constatar os ferimentos no peito de Pedrão, que inclusive, foi dispensado do trabalho durante três dias para tratamento. Pedrão sorrindo dizia: - Pois é! Eu vinha andando quietinho no meu caminho, foi se meter a besta comigo!? Pode ser deste mundo ou do outro, prova da minha lambedeira! Exibia a faca, como um troféu.
Mestre Assis disse que no intervalo do almoço, acompanhado de alguns amigos, resolveram ir até o dito cabaré nos coqueiros para se interarem melhor sobre o acontecido. Souberam que próximo dali numa ruazinha, havia morrido um homem esfaqueado. Ficaram desconfiados. Indo até ao dito local, o defunto estava na salinha humilde da casa, estirado em cima de uma porta, encoberto por um lençol encardido, supurando sangue em vários locais por conta das perfurações. Ao indagarem à viúva, além de algumas pessoas ali presentes, estes ressabiados parecendo querer ocultar alguma coisa, apenas comentavam: - Ele estava em uma festa, aconteceu uma briga, o mataram, mas não diziam onde foi a festa, quem o matou, somente evasivas.
Mestre Assis me afirmou não ter dúvidas, nem ele, nem os demais companheiros, inclusive Pedrão, de que não era outro, senão aquele infeliz, o tal Lobisomem. Certo é que, daquele fatídico dia em diante naquelas paragens, não mais se ouviu falar em Lobisomem.
Em Camocim estórias de lobisomens são recorrentes, sempre têm permeado o imaginário popular, sendo contadas pelos mais antigos. De tempos em tempos o dito cujo, dar o ar da sua graça, aparecendo envolto em sua aura mística sempre causando medo, assombro, promovendo inquietação e alvoroço.
Porém quando imaginava-se que tal ente, houvesse sumido definitivamente, eis que recentemente desafiando a tecnologia urbana existente. Iluminação led, câmeras de segurança. O atrevido reapareceu em grande estilo, sendo flagrado em diversos logradouros da cidade. Pasmem! Foi Inclusive fotografado, viralizando nos blogs de notícias locais, bem como, nas redes sociais, com direito a depoimento de pessoas que juram tê-lo visto "in loco."
Parece que a despeito do inimaginável, o abominável Lobisomem em detrimento à todo aparato da atual modernidade está em plena atividade e continua aprontando suas peripécias.
Assombrando e encantando o limiar fascinante e fértil do nosso imaginário.