Por Inácio Santos
Ainda quando a cidade terminava antes do final da rua três de outubro, incrustado entre as ruas Paissandu e Alcindo Rocha, ali estava ele. Vou chamá-lo como o conheci e como todos o chamavam: Cemitério Velho. Embora seu nome oficial fosse Cemitério São Francisco. Não sei precisamente a data de sua inauguração. Possivelmente meados do século dezenove, por tal motivo conhecido como cemitério velho, até mesmo porque há muito estava desativado, pois já se encontrava o atual cemitério sao José em plena atividade.
Ora pois, ali estava ele (cemitério velho), a nos fascinar. Moleque na época, morando a poucos metros do dito cujo, na rua da Independência, era ali um dos pontos preferidos por nós (molecada) para as nossas brincadeiras, com direito a toda sorte de danações, que iam desde o simples esconde-esconde entre os túmulos, caça de passarinhos, calangos, lagartixas, com nossas terríveis baladeiras, até pregarmos sustos nas pessoas, visto que, naquele tempo o lugar era ermo, para ali passar tinha que ser por uma espécie de trilha, obrigando os transeuntes andarem por cima da calçada do cemitério. O referido tinha o muro relativamente baixo, deixando a mostra uma boa visão de seu interior. Eram nesses instantes que nós nos escondíamos. Quando os menos avisados por ali vinham, principalmente mulheres, nossas vítimas preferidas, saíamos de chofre, soltando terríveis berros, gritos, ou jogando areia por sobre o muro nas pessoas. Por estarem a andar na calçada de um cemitério, embora desativado, tinham motivos de sobra para sentirem-se apreensivas. Os sustos e carreiras destas, nos deleitava. Ríamos a bandeiras despregadas, aquele riso puro, ao mesmo tempo diabólico, de moleque travesso que se regozija com o resultado de sua travessura.
Por mais que nossos pais nos avisassem para que lá não fôssemos. Para nos amedrontar diziam “cobras e lagartos”. Coisas como: Que poderíamos pegar doenças terríveis, pois o lugar era contaminado; que havia cobras venenosas, ( no fundo não era mentira). Mas nada do que diziam, ou até mesmo os castigos não nos dissuadia, muito pelo contrário, algo de mágico, invisível, misterioso, nos empurrava cada vez mais para o nosso refúgio (Cemitério Velho). Ali era nossa praia.
Conhecíamos cada pedaço, cada túmulo, cada catacumba. Eram nossos parceiros e confidentes. Tinha aquela toda em mármore preto e branco, com um epitáfio de letras douradas e foto em alto relevo. Pertencia a um general, não lembro o nome. Datava de mil e oitocentos e qualquer coisa. Nós a olhávamos com admiração, general, mármore, luxo, riqueza. Até evitávamos danificala-la, era a nossa preferida. Haviam aquelas já abertas, corroídas pelo tempo. Uma outra que a noite servia de dormitório para um maluco da época, Chico doido. Além de muitas outras, cada qual com suas peculiaridades.
Certo é que ali no cemitério velho, tínhamos tudo que queríamos para realização de nossas incontáveis brincadeiras. Conhecíamos palmo a palmo o nosso reduto. Pulávamos por cima dos túmulos e catacumbas com a agilidade de um bando de babuínos.
No entanto, um certo dia fomos surpreendidos por pessoas estranhas. Homens e máquinas. E quedamo-nos boquiabertos, quando o trator entrou em nosso Campo Santo, bufando, fazendo enorme barulho. A máquina monstruosa foi vencendo construções seculares, destroçando, despedaçando, transformando em entulho, tudo que encontrava pela frente. Em poucas horas nada mais restava que um simples terreno aplainado.
Vimos tudo aquilo empoleirados em cima de um pedaço de muro, último a ser derrubado, com um misto de revolta e fascinação.
Hoje aquele local faz parte de uma paisagem da cidade totalmente diferente. Ali está localizada a Praça Sinhá Trévia, popularmente conhecida como Praça da Rodoviária. Para alguns (no meu caso), Praça da Saudade. Saudade sim! Dos bons tempos ali vividos, dos folguedos, brincadeiras, que ficaram registrados em minha lembrança com marcas indeléveis. São reminiscências saudosas de uma época de outrora, que o tempo inexorávelmente levou.
Inácio Santos