Na luminosa sala de uma residência no bairro Joaquim Távora, em Fortaleza, dom Manuel Edmilson da Cruz recebe amigos e visitantes atento ao que cada um traz para partilhar. Um retrato vivo da comunhão, generosidade e sabedoria que o bispo emérito de Limoeiro do Norte semeia há quase um século. Dom Edmilson da Cruz é um dos seis agraciados com a Medalha da Abolição de 2024.
Sobre a honraria concedida pelo Governo do Estado, ele responde: “Há muito tempo, quando eu era seminarista no Seminário Maior, eu tirei uma conclusão que, aparentemente, é muito negativa, mas se for olhar com mais profundidade é o contrário. [a conclusão] é a seguinte: eu sou um homem que não tenho nenhum mérito”, diz dom Edmilson.
“O maior cearense vivo”
Para aqueles que o acompanham de perto, a trajetória de dom Edmilson da Cruz merece todo o reconhecimento. É o que defende o professor universitário aposentado e ex-reitor da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Cláudio Regis de Lima Quixadá, 83.
“Eu considero o dom Edmilson o maior cearense vivo. Para ser sincero, achei que foi uma outorga tardia. Dom Edmilson, sem sombra de dúvida, é merecedor dessa medalha, dessa honraria. Ele é um homem respeitado não só no Ceará, no Brasil, e quiçá, internacionalmente, pela postura face aos direitos humanos e à doutrina social da igreja católica”, ressalta Cláudio Regis, que convive com o homenageado há 26 anos.
O padre da Arquidiocese de Fortaleza e professor universitário Evaristo Marcos, 56, descreve dom Edmilson da Cruz como um humanista. “Ele se preocupa em primeiro lugar com as pessoas, indiferemente de classe social, sexo, gênero e religião. O aspecto que o define melhor é a coerência com o que ele acredita, prega e vive. Por isso ele tem sempre uma palavra segura em todos os momentos, seja sobre a fé, a sociedade ou a pessoa humana”, complementa o padre, que conhece dom Edmilson há mais de 40 anos.
O tempo da escolha e o sentido da palavra
Natural de Acaraú, no Litoral Norte do Ceará, dom Edmilson nasceu em 3 de outubro de 1924, e é considerado o bispo mais idoso do Brasil. Sobre a vocação sacerdotal, dom Edmilson diz que não lembra quando teve início o tempo da escolha. A mãe, Luzia de Lima da Cruz, era religiosa e desejava que o filho se firmasse no catolicismo.
“Aquele que me chamou à vida foi mostrando o que era para fazer, para pensar. Além de todas as pessoas que colaboraram desde o lar materno, até aquelas que vivenciaram a minha vida. Isso vai dar a compreensão de quanto a gente tem que agradecer. Mesmo aqueles que nos falem o contrário do que a gente pensa, eles têm alguma coisa que a gente pode agradecer”, pontua dom Edmilson.
Em relação ao pai, João Batista da Cruz, a lembrança que ele destaca é a dedicação ao conhecimento e à poesia. A palavra, inclusive, revela-se como elemento fundamental ao longo de sua vida. Na ordenação presbiteral, que ocorreu em dezembro de 1948, em Sobral, ele escolheu como lema a frase em latim “verbum caro factum”, que em tradução para o português significa “o Verbo se fez carne”, conforme escrito no livro de João capítulo 1: versículo 14.
“A palavra é alguma coisa que está profundamente ligada à pessoa, porque manifesta o pensamento, a vontade ou o contrário da vontade. É uma parte essencial da nossa vida. Toda pessoa tem palavra, seja oral, gestos ou atitudes. O surdo fala, o mudo fala ao seu modo. É um dom de Deus para a Glória de Deus. A palavra é Deus. A palavra de Deus é a verdade”, assegura.
Em 1966, dom Edmilson se tornou bispo, também em Sobral, desempenhando o papel de bispo auxiliar de São Luís do Maranhão (1966-1974); vigário episcopal da Forania de Brejo – MA (1966-1974); bispo auxiliar de Fortaleza – CE (1974-1994); administrador apostólico “Sede Plena” (1992-1994) e bispo de Limoeiro do Norte – CE (1994-1998). Renunciou ao exercício pastoral em 5 de junho de 1998, por limite de idade, como estabelece a doutrina católica.
Dom Edmilson também lecionou e foi gestor em instituições religiosas, além de ter publicado diversos livros. “Ainda hoje sou professor. Pessoal vem pedir uma aula, e eu dou. Faço isso com muito gosto”, diz o religioso.
Justiça social
A coerência na luta pelos direitos humanos e justiça social se confirma em diversos momentos da história de dom Edmilson. Um deles, narrado por Cláudio Regis, dá conta de que o religioso se recusou a celebrar uma missa, na cidade de São Luís, no Maranhão, que tinha como objetivo homenagear a Ditadura Militar. “Na época da Ditadura, ele teve embates com Alfredo Buzaid (jurista, advogado, magistrado e professor – foi ministro da Justiça, no Governo Médici, e ministro do Supremo Tribunal Federal – STF, indicado pelo presidente João Figueiredo), que dizia que não tinha tortura. Dom Edmilson disse que [a fala de Buzaid] era um equívoco, porque existia tortura”, relata.
Em 2010, o bispo emérito também recusou em Plenário a comenda de Direitos Humanos Dom Hélder Câmara, conferida pelo Senado Federal. O gesto foi em protesto contra o aumento salarial dos parlamentares – superior a 60%. Para o religioso, conhecido por rechaçar a corrupção, o “aumento aprovado deveria sempre guardar a mesma proporção que a elevação concedida para o salário mínimo e a aposentadoria”, relata o texto divulgado à época.
Na sessão, dom Edmilson declarou: “Quem assim procedeu não é parlamentar, é ‘para lamentar'”. E prosseguiu: “Só me resta uma atitude: recusá-la. Ela é um atentado. Uma afronta ao povo brasileiro, ao cidadão, ao contribuinte para o bem de todos com o suor de seu rosto e a dignidade de seu trabalho”, justificou.
Viver o evangelho
Padre Evaristo diz que aprendeu o verdadeiro sentido de viver o evangelho ao ver a união que existia entre dom Aloísio Lorscheider, então cardeal-arcebispo de Fortaleza, dom Geraldo do Nascimento e dom Edmilson da Cruz, que eram arcebispos auxiliares. “Eles não estavam preocupados em passar doutrinas, normas, etc. Estavam preocupados em viver o evangelho na prática, na vida da sociedade, das comunidades, dos cristãos. Isso me ensinou muito a pensar o meu ser humano, ser cristão e padre diferente”, define.
Para os três, servir a Deus sempre foi estar perto das pessoas, principalmente daquelas que mais carecem de esperança. Foi seguindo esse propósito que conduziram a pastoral carcerária, realizando visitas a pessoas privadas de liberdade, apurando denúncias sobre violação de direitos humanos no sistema prisional cearense.
No dia 15 de março de 1994, em uma visita ao antigo Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), na Região Metropolitana de Fortaleza, os três foram vítimas – junto a outras nove pessoas – de um sequestro que começou após rebelião de internos e durou cerca de 24 horas.
A postura deles durante o episódio que comoveu o Ceará e o Brasil transmitiu o poder da fé e a vivência concreta do evangelho. “Dom Edmilson tem uma fé inabalável, é confiante, acredita na providência divina e vive a fé”, testemunha padre Evaristo.
Perseverar na fé, estar perto das pessoas e ampliar os saberes é para esse homem centenário a ponte para a longevidade. “A gente vai entrando em contato com as pessoas e, devo dizer, vamos também crescendo. Esse crescimento produz um relacionamento melhor, porque vamos conhecendo melhor a si próprio e as pessoas. Assim, vamos chegando a idade que eu estou chegando, aprendendo todo dia”, conclui Dom Edmilson.
Medalha da Abolição
A comenda, instituída em 1963, é concedida pelo Governo do Estado em reconhecimento a personalidades que desenvolvem um trabalho relevante para o Ceará e o Brasil. A solenidade de entrega será realizada no dia 3 de maio, no Palácio da Abolição, em Fortaleza.
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