Mãe cearense relata dia a dia após perder dois filhos por suicídio: 'não vivo mais, sobrevivo' - Revista Camocim

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terça-feira, 13 de setembro de 2022

Mãe cearense relata dia a dia após perder dois filhos por suicídio: 'não vivo mais, sobrevivo'

 


Quinta-feira, 14 de julho de 2016, uma da tarde. Uma ligação.


– Mainha, quando a senhora vai comprar meu tênis da academia? 

– Quando você vai começar, meu filho?

– Segunda.

– Então sábado a gente compra.


Fazendo planos. Foi assim a última conversa que a cearense Guta Alencar teve com Felipe, filho mais velho, à época com 16 anos. Horas depois, o menino “lindo, comunicativo, generoso e dedicado à igreja e às coisas de Deus” tiraria a própria vida. 


Faz 6 anos, mas tempo nenhum foi ou será capaz de apagar as palavras dele da mente, o abraço dele da pele, o cheiro dele do olfato, como garantiu Guta em conversa com o Diário do Nordeste.


Quando perdi meu filho, eu achei que não ia suportar. As pessoas falam ‘ah, mas você tem outros filhos’. Nenhum substitui o outro. A dor é única.

GUTA ALENCAR

Gerente administrativa e estudante de Psicologia


Três anos depois, em junho de 2019, a dor aguda e única dobrou. Davi Alencar, que nasceu 1 ano e 4 dias depois de Felipe, não suportou a vida que ficou sem o irmão, com quem até dormia junto. E também partiu. Era o segundo suicídio ao qual Guta precisaria sobreviver.


“Eles eram extremamente apegados, cresceram fazendo absolutamente tudo juntos. E eu também muito apegada a eles, porque só tive outra filha quando o Felipe, mais velho, já ia fazer 14 anos. Nossa vida foi sempre nós três muito juntos”, reforça a mãe.


É como se, depois que se tornou mãe, cada pedaço do coração de Guta pertencesse a um dos filhos. “Hoje, tá lá o pedacinho da Eva, minha mais nova. Meu coração não é completo.”


Sabe o que é alguém abrir o seu peito sem anestesia, arrancar um pedaço do seu coração e costurar o seu peito de volta? Foi assim. Não tem um dia que eu não lembre dos meus filhos e sinta falta deles. Eu não vivo mais, eu sobrevivo.


“EU NÃO CULPO NINGUÉM”


A partida de Felipe foi repentina. Na tarde em que tirou a própria vida, ele e a então namorada terminaram o relacionamento. A garota chegou a pedir, por telefone, que Davi checasse o irmão. Mas o filho mais novo de Guta tinha acabado de sair de casa, e achou que o irmão não estava lá. Então seguiu.


Mas Felipe estava, sim. Horas depois, seria encontrado pelo padrasto já sem vida. “Mas eu não culpo ninguém, ninguém mesmo, gosto de frisar isso sempre. Foi uma decisão do meu filho”, destaca Guta.


Meus filhos não tinham depressão. O Felipe se matou por um impulso, por uma dor que achou que não ia conseguir suportar. Quando ele morreu, aí o Davi entrou em depressão.


Por três anos, Davi “lutou bravamente”, como Guta faz questão de lembrar. Lidou com a culpa, com a saudade do irmão, fez planos de se formar em Psicologia, mudou de cidade. Namorou, dedicou amor aos animais, aos vários instrumentos que tocava. Cuidou da saúde mental. Mas não resistiu.


“Isso acabou com o meu filho. Eu não podia sofrer, não vivi meu luto com o Felipe porque o Davi tava sofrendo demais. Como eu ia cuidar dele? Eu não podia ficar tocando no assunto, mas minha vontade era dizer todo dia: ‘filho, por favor, não me deixa.’ Eu teria dado minha vida pelos meus filhos.”


O sol mal tinha nascido em Juazeiro do Norte, no dia 28 de junho de 2019, quando Guta ouviu do marido que algo havia acontecido com Davi, que morava em Sobral para estudar.


“Acidente de moto”, ela pensou. Suicídio nem passou pela cabeça, o filho estava bem.


“E aí meu marido me segurou pelos braços e disse: ‘não, amor, ele fez a mesma coisa que Felipe’. E eu disse ‘não, tá acontecendo algum engano, Máximo, ele vai já buscar o dinheiro pra ajeitar o celular’...”, relembra. 


A última conversa de Guta com Davi, então, havia sido essa: sobre o conserto de um aparelho celular. “Não foi reviver, porque a dor pelo Felipe continuava lá. Foi uma outra dor.”


“VIVO COM UMA DOR DESUMANA”


Faz 6 anos que Guta perdeu Felipe, 3 anos que perdeu Davi. E um dos “por que” que ainda insistem em aparecer surge na nossa conversa. “Por que meu filho não pegou o telefone e me ligou, 'mainha, tô com uma dor aqui, venha agora'? Eu teria largado tudo. Quando a morte é por suicídio, o dedo aponta pra gente, pra mãe.”


Durante esse tempo, Guta começou a prestar apoio a outras mães enlutadas, por meio do projeto individual que chama de “SobreViver”. No percurso, ela garante que só a fé, o tratamento de saúde mental, a família e os amigos – nessa ordem – a sustentam.


Muitas pessoas vão ao psicólogo e não vão ao psiquiatra. Não adianta, porque você não dorme à noite, não come. Quando me perguntam o que me mantém viva, digo: 1º Deus, 2º o apoio psiquiátrico e psicológico; depois, família, amigos, trabalho. Se eu não me tratar, não vou ser gente pra cuidar da minha família.


Ao ouvir e falar com outras mães que perderam os filhos por vários motivos, e não só suicídio, Guta diz ter percebido: “só entende uma mãe que perdeu um filho outra mãe que perdeu um filho. Se você não passou, você não sabe.”


Nas conversas, ela tenta dizer o que gostaria de ter ouvido ao perder seus dois meninos, e alertar as mães sobre o que vão escutar e devem ignorar. 


“As pessoas ficam falando coisas que não têm sentido, tentando aplacar nossa dor. Se não sabe o que dizer, só abrace e diga que está lá”, recomenda Guta.


Gostaria de ter ouvido que essa dor não passa, mas que eu iria aprender a conviver com ela. Que eu não precisava tomar decisões, doar as coisas dos meus filhos, tirar as fotos deles da casa. Que a saudade não diminui, porque cada dia que passa foi um a mais que não vivi com eles.


“Não queria ter ouvido ‘ai, mulher, não chora, eles não iam gostar de te ver assim’. ‘Não fica assim, você tem outros filhos.’ ‘Já tá bom, já faz tempo, viva sua vida.” Porque a falta de um filho nunca vai ser confortada pela presença dos outros”, complementa a cearense.


Guta convive, hoje, com a saudade dobrada. “Com uma dor desumana e um buraco no coração. Às vezes, fecho os olhos e sinto o cheiro dos meus filhos, como se eles estivessem aqui.”


O sonho, agora, é fazer o projeto SobreViver crescer. Criar no Ceará, de forma independente, um espaço de apoio a mães que perderam os filhos, ofertando psiquiatra, psicólogo e outras atividades de acesso ainda escasso na rede pública de saúde.


Ou, como Guta sintetiza: “ajudar outras mães a irem sobrevivendo.”


Caso você esteja se sentindo sozinho, triste, angustiado, ansioso ou tendo sinais e sentimentos relacionados a suicídio, procure ajuda especializada. É possível encontrar apoio em instituições como o Centro de Valorização da Vida (CVV) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).


Diário do Nordeste