O PORCO DO VIGÁRIO - Revista Camocim

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

O PORCO DO VIGÁRIO

Por Inácio Santos

Depois de alguns anos desativada, talvez pela escassez de padres à época, a Igreja de São Pedro foi novamente reativada com a vinda de mais um padre para tomar conta da referida paróquia, visto que o vigário geral (saudoso) Monsenhor Inácio Nogueira Magalhães, estava velho e cansado para cuidar de duas paróquias, e ainda viajar para os muitos interiores, celebrar festejos, etc., como manda o ofício de bem cuidar do rebanho.

O então ordenado padre foi designado para coadjuvá-lo em tal mister, e para isso fixou residência na casa paroquial de São Pedro, anexo à igreja, ou melhor, uma espécie de continuidade, pois a casa é interligada à nave.

Candidatos a seminaristas, líderes de grupos jovens, e outras atividades pastorais, eu, Severino e Batista, auxiliávamos o padre nas atividades do dia-a-dia, bem como, secretaria, viagens e as famosas “desobrigas”, pois com a chegada do jovem Padre toda essa parte passou à sua responsabilidade.


Tudo ia muito bem; recuperamos a secretaria que estava jogada às traças, formamos outros grupos de jovens (inclusive um do próprio bairro de São Pedro); organizamos um calendário de visitas pastorais, horário para confissões, casamentos, batizados, etc. Em suma, colocamos a casa (igreja) em ordem. Tais fatos acontecem concomitantemente no ano de 1973.

Com a aproximação da “semana santa” do citado ano, eis que então veio endereçado ao padre da paróquia (São Pedro) um convite para que o mesmo participasse de um “retiro espiritual” na capital de Pernambuco – Recife, - evento da maior importância de neo-padres, que iniciam suas vidas paroquiais. Não deu outra! De imediato, o convite foi aceito. O tal retiro começava quinta-feira santa indo até Domingo da Ressurreição. Eram, assim, portanto quatro dias.

Ao chegar o dia da viagem, o reverendo fez as malas, não antes de chamar-nos e desfiar um rosário de responsabilidades e tarefas que iam desde as reuniões com grupos, limpeza e manutenção, recado aos paroquianos e beatos, bem como as devidas desculpas pelo seu afastamento, cuidados com a casa, e uma atenção especial para com o quintal onde havia suas criações: patos, galinhas, marrecos, atentando ainda mais cuidadosamente para um porco (suíno) que estava lá no fundo do quintal, na serva (engorda) dentro dum chiqueiro, pois como é notório e tradicional de sexta para sábado (na semana santa), ovinos, suínos e toda ordem de galináceos, são discretamente subtraídos (roubados) dos quintais para o regalo no sábado de aleluia.

O referido porco havia o Sr. Vigário ganho em uma de suas andanças pelo interior, ainda filhote (bacurim). Trouxera-o e mandara construir um chiqueiro e o estava reservando para quando completasse um ano de paróquia (faltavam três meses), quando pretendia degustá-lo com alguns amigos, num lauto e regalado churrasco, regado com algumas cervejas. O animal já estava de “bom tamanho”, ou seja, no ponto; mas seu destino estava traçado para a tão esperada comemoração de um ano de paróquia.

O certo é que o reverendo se foi para participar do retiro e nós ficamos aptos e convictos a cumprir com nossas obrigações. Mas como é sabido que “raposa não toma conta de galinhas”, não é que o Batista que, por ser o mais velho do grupo, era uma espécie de líder (eu tinha 17 anos, Severino a mesma idade e ele 19) de chofre nos disse:

- Vamos roubar o porco do padre? Nós, eu e Severino fomos pegos de surpresa ante tal questionamento e emudecemos. Ao que ele (Batista) retrucou:

- Ora, vamos! A gente mata o porco, faz um pic-nic com a turma do JUBASP – Juventude Unida do Bairro de São Pedro, no outro lado (Ilha do Amor). Quando o padre chegar e sentir falta, dizemos que o dito cujo foi roubado. E então? Topam? Passada a surpresa, e levando em conta os arroubos próprios da juventude por aventuras, não deu outra, concordamos na hora.

Dito e aprovado, passamos a maquinar a trama e entramos em ação. À noite, na reunião com o grupo que era misto, levamos a idéia, que no início contou com algumas poucas objeções, mas que logo foram suplantadas pela aquiescência e aprovação da maioria. E assim foi feito.

Na madrugada da sexta para sábado, o porco que estava reservado para a comemoração de um ano paroquial, disto dali a três meses, finou-se.

Doamos a cabeça, mocotós (pés) e vísceras a um Sr. (profissional) que nos ajudou. Enterramos o sangue, pêlos e demais supérfluos num buraco fundo feito no quintal, pois não podíamos deixar vestígios do crime.

A carne do leitão, que por sinal estava deliciosa, foi avidamente consumida, acompanhada com farofa, baião-de-dois e outras guloseimas, tudo regado é claro com muita pinga, cerveja, refrigerante, bastante alegria e gozação.

É claro que tornamos todo o grupo nossos cúmplices e ninguém poderia abrir o bico, ou seja, todos deviam confirmar o que nós três (eu, Severino e Batista) íamos falar: o porco fora roubado.

Passados os dias, chegou a hora do retorno do vigário. Fomos esperá-lo com o jeep, na rodoviária. Era já quase noite de segunda-feira, quando finalmente o ônibus chegou. Colocamos as malas no carro e fomos para casa. O padre tomou banho, depois jantou, e conversa vai, conversa vem, pergunta isso, pergunta aquilo, ele nos falando do êxito do retiro, nós dissemos que tudo havia corrido as mil maravilhas, e como já era noite, e todos, principalmente o padre estava enfadado, fomos dormir.

Terça-feira, logo que o dia amanheceu, fomos despertados com o grito do reverendo, nos acordando, pois tinha ele o hábito de se levantar cedo e logo verificava o quintal. Não deu outra! Ao fazer tal inspeção, do porco só havia sobrado o chiqueiro.

- Mas não é possível! O que aconteceu? Eu não falei para vocês terem cuidado? Cadê o meu porco? Acordamos sob esta saraivada de lamentos, misturadas com acusações.

Batista, até por ser nosso líder e mentor, pigarreou, pois nada o apressava, com seu jeito macio, na maior calma e descaramento afirmou:

- Pois é, Padre... nós esquecemos de lhe falar ontem, mas não é que o ladrão entrou e levou o bicho! Nós fomos dormir de madrugada, fomos ao quintal, o porco estava aí quietinho dentro do chiqueiro. Quando foi de manhã, nem rastro. Não foi? Olhou pra nós que, ato contínuo, confirmamos – cada qual a sua maneira:

- É verdade. Ninguém ouviu nada.

- Como é que pode? E olhe até que o bicho já era bem grandinho. Foi aí que o circo pegou fogo, ou melhor, a igreja. O padre nos acusava, nós nos defendíamos, jurávamos de mãos e pés juntos. E vai lá, vai cá... O certo é que o vigário não se convenceu, nem se conformou muito com a nossa história, pois já nos conhecia. Porém, nada mais havia a fazer e, como era hora do café e logo após a missa matinal e outros afazeres, nós também tínhamos as nossas tarefas. Ele se foi, mas prometendo que ia investigar, e ai de nós, se descobrisse alguma mutreta.

O dia transcorreu nesse clima: todo mundo calado pelos cantos, ressabiados. Ele, conosco, e nós, em contrapartida, fingindo estar magoados.

Mas como não existe crime perfeito, o padre pergunta aqui.... investiga ali... não é que um dos membros do grupo jovem era parente de um sacristão (havia dois na igreja) e comentou o acontecido em casa. O dedo-duro do sacristão ouviu e, como todo bom puxa-saco, só deu tempo de chegar até o padre, e...

Quarta-feira, pela manhã, foi quando o “Judas Iscariotes” (Sacristão) nos delatou. O padre, ao saber de tudo, (pois o babão relatou nos mínimos detalhes), ficou como se diz por aí: “fumando numa quenga”... Veio para cima de nós – Diz-se por aí, (com quatro pedras na mão). Ele veio com quarenta.

Irresponsáveis! Mentirosos! Ainda por cima, querem ser seminaristas! Pois não serão! Vou contar tudo ao bispo... e tem mais, vocês três vão pagar, vou descontar do que vocês ganham (era apenas ajuda de custo, uma merreca), ainda vou chamar o pai de vocês para que tomem conhecimento... E por aí a fora vociferava o encolerizado padre.

Ficamos calados, cabisbaixos, pois não tínhamos razão e nem podíamos revidar. Após o sermão, depois de dizer “cobras e lagartos”, o reverendo saiu.

- Não disse que não ia dar certo?
- Que nada, se não fosse aquele sacristão puxa-saco...
- E agora? O que vamos fazer? Pagar? Se o dinheiro que a gente ganha não dá pra nada.

- Será que ele vai dedurar para o bispo e impedir nossa entrada no Seminário?
Ficamos conjecturando por um bom tempo até que o famoso e tinhoso Batista, disse de repente:

- Esperem! Eu achei uma solução! Além de ele ter que nos perdoar, não teremos que pagar nada e não poderá falar nada, nem pro bispo, nem para nossos pais e nem pra ninguém.

- Qual é?

- Fala! Inquirimos eu e Severino ao mesmo tempo. Batista nos chamou a um canto e com aquele jeito próprio, malandro, e maquiavélico segredou nos nossos ouvidos em tom de sussurro.

Ora, pois não deu outra! No final da missa das 17:0min havia uma hora para as beatas e os beatos se confessarem. Neste dia, na fila, havia mais três: eu, Severino e Batista. Pois é, sabido que todo pecado é perdoado no ato da confissão, e que o segredo é inviolável, não pode o padre comentar, sob pena de perder o direito do sacerdócio.

Na hora do jantar, quando nos reunimos à mesa, o padre olhou bem para cada um de nós e ainda fingindo estar zangado perguntou:

- Muito bem! De quem foi a idéia da confissão comunitária?

Olhamos, eu e Severino, incontinenti para o Batista que a todos encarou ao mesmo tempo com a cara mais cínica e deslavada.

Ninguém mais resistiu:

Foi uma gargalhada geral.