DE VOLTA À IDADE MÉDIA EM UM PASSE DE MAGIA NEGRA - Revista Camocim

quinta-feira, 8 de maio de 2014

DE VOLTA À IDADE MÉDIA EM UM PASSE DE MAGIA NEGRA




O Revista Camocim reproduz o artigo de Sergio Nogueira Lopes, que é embaixador da Sociedade Pestalozzi do Brasil, sociólogo, jornalista e escritor, autor de O Mal Ronda o Mosteiro, entre outros livros.  O artigo está publicado no  Correio do Brasil e discorre sobre a onda de "justiça com as próprias mãos".

"À sombra dos archotes, o ódio nos discursos cegos, o medo indômito e ela, a terrível ignorância que persegue a humanidade desde tempos ancestrais, ressurgem de tempos em tempos em alguma parte do mundo, sempre prontos a deixar vítimas espancadas, pisoteadas, queimadas, dilaceradas sob o peso da intolerância. Dessa vez foi uma dona de casa em uma cidade litorânea do Estado de São Paulo, onde a classe média paulistana passa os dias livres, deixa alguns trocados e, principalmente, a mentalidade tacanha do conservadorismo que faz relinchar apresentadores de TV que defendem ‘justiceiros’, aplaudem a pena de morte sumária e tecem loas à violência da turba. A mesma que, dessa vez, foi longe demais.

O psicanalista suíço Carl Gustav Jung, na trilogia Misterium Coniunctionis, mais uma vez aborda o fato que, além do inconsciente pessoal, há nos seres humanos uma camada mais profunda em que mitos, religiões e a experiência humana confluem. Esse extrato mais profundo é o inconsciente coletivo. Significa que todos nós, de algum modo, estamos conectados e fazemos parte de uma grande comunidade. Jung chega a ressaltar a distinção entre sonhos pessoais e sonhos coletivos, nos quais o pavor toma forma e impulsiona a barbárie ao ponto em que chegou às ruas descalças de um bairro pobre da periferia, em uma cidade satélite do maior centro urbano brasileiro.

As sombras descritas por Jung, onde convivem os monstros capazes de torturar um outro ser humano até a morte, ergueram-se desta feita em uma comunidade de gente simples. Tratam-se de reféns da sociedade fracionada que se guia nos meios de comunicação, nos programas policiais que fazem escorrer sangue pela telinha, no hálito repugnante de apresentadores ligados às facções obscuras de uma parcela mínima da sociedade brasileira. Esta, porém, guarda a parte do leão, o direito à opinião na mídia, a propriedade dos canais de TV, as contas bancárias recheadas de dinheiro público que compra iates, jatinhos e casas suntuosas em balneários como aquele, onde morreu a jovem mulher, mãe de dois filhos. Acaba tudo interligado. Vão todos eles para o mesmo caminho.

Não bastasse a dominação do inconsciente coletivo pelas ondas da mídia alienante, percebe-se nesse ato de extrema selvageria o catalizador que reúne o número necessário de bestas capazes de tirar a vida de uma mulher frágil, indefesa, desarmada, surpreendida na rua enquanto fazia a caminhada diária. Na foto, publicada em uma rede social, parecia-se com uma mulher acusada de raptar crianças para fazer magia negra. Percebe-se, nesse instante, que o erro é mais grave do que previram os analistas. O linchamento aconteceu porque a vítima era parecida com alguém que, supostamente, seria uma bruxa malvada. O nível de loucura, sadismo e alienação de um grupo social é tamanho que uma história da carochinha mobiliza centenas de indivíduos para cometer assassinato. Pausa para reflexão.

Tamanha abstração dos valores pétreos de um povo não pode passar despercebida. Não resta dúvida que as marionetes no poder, sob os títeres da mídia, do poder global, das galáxias, dos quintos dos infernos, demoram a reagir diante do pânico que um crime hediondo como este causa, inexoravelmente. E quando reagem, a tendência é a de se exacerbar, pois esperam um resultado diferente, cometendo exatamente os mesmos erros. É mínima a chance de uma ruptura na blindagem, capaz de deixar circular um ar novo nos porões tomados por uma pestilência secular, no qual apaga-se o brilho daquela sociedade que, um dia, presumiu-se justa, avançada e progressista. Mas a chance existe. Imagina-se que sim".