"A questão não é ter pena. Não se trata de, grosso modo, defender o bandido".
O Revista Camocim publica o artigo de opinião da Anannandy Cunha, 19 anos, estudante do primeiro período do curso de Direito da Universidade Estadual do Piauí, campus Parnaíba. anannandycunha@gmail.com.
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"No dia 06 de maio eu escrevi em meu Facebook uma reflexão a respeito dos recentes linchamentos que tem acontecido, como o da senhora Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, vítima de linchamento no Guarujá há poucos dias, que foi confundida com alguém que raptava criancinhas para fazer magia negra. Tanto não existiam registros de sumiço de crianças como a mulher foi confundida com a que seria responsável pelos sumiços fajutos. Uma verdadeira confusão que culminou com a morte de uma mãe de família.
Sobre o assunto, escrevi que eu “poderia falar horas sobre o que penso a respeito das atitudes desses metidos a justiceiros. Justiceiros que saem por aí matando inocentes. (...) Esse comportamento generalizado tende ao caos. (...) Mesmo que a pessoa fosse criminosa, errada, como aquele rapaz que foi amarrado a um poste, ainda assim não deveria ser alvo desse tipo de atitude. Falar de comportamentos sociais demanda esforço e muita compreensão. Reduzir esses fenômenos a vida de um ou outro menino delinquente é tapar o sol com a peneira e desconsiderar um sistema todo falho, que é o do serviço público brasileiro”(...)
Existem pessoas que defendem as atitudes desses grupos de justiceiros, que acreditam que “quem com ferro fere, com ferro será ferido”. Que me perdoem meus professores de português pelo fato de eu utilizar uma expressão tão comum que empobreceria meu texto, mas não há expressão que defina melhor e tão simplesmente esse posicionamento quanto essa. Essas pessoas acreditam que “bandido bom é bandido morto”. Dizem que quem nunca passou por um momento de perda de um familiar querido, vítima da violência, jamais vai entender o sentimento de revolta com a atuação falha do estado em punir os agentes infratores da lei, especialmente os menores de idade (detalhe: tenho familiares e amigos que foram roubados, ameaçados, enfim – antes a existência de condições para que isso não tivesse ocorrido do que eu me revoltar e sair querendo bancar a “Justa”). Dizem: “Se o estado não pune, vamos punir! Obrigado, justiceiros, por fazerem o que quem deveria fazer não faz”. Posicionamento perigosíssimo. E há quem diga mais: eles creem que aqueles que são contrários à prática desses linchamentos (como eu) e que defendem a manutenção da idade penal como 18 (eu sou contra a redução – numa outra oportunidade eu poderei falar mais sobre esse assunto) são defensores de bandido! Simples assim!
A questão não é ter pena. Não se trata de, grosso modo, defender o bandido. Trata-se de reconhecer que estamos, todos, sujeitos à autoridade do estado, de acordo com as leis que, pelo menos teoricamente, são a concretização do que a sociedade define como correto ou não. Isso quer dizer que esses chamados justiceiros não têm autoridade nem competência para julgar quem quer que seja. Podem retrucar: “mas o judiciário é lento, a lei nem sempre é justa, a polícia tarda a prender os criminosos, ninguém faz nada para mudar essa situação, os direitos humanos não defendem os humanos direitos, que trabalham muito para ter pouco e ainda perdem o pouco que tem; é preciso que alguém faça alguma coisa”. Certo. Vamos analisar esse argumento.
Com base em que tipo de critérios as pessoas poderão punir umas às outras? Todos podem punir por qualquer infração cometida? Quem é que dará a certeza dessa infração? Vale ressaltar que a mulher morta era completamente inocente, e foi agredida por pessoas que achavam que ela realmente era perigosa. Achavam. Para responder às perguntas que fiz, posso afirmar que o estado tem deveres em relação aos cidadãos. No artigo 5º da Constituição Federal afirma-se a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Esses direitos são considerados fundamentais. Como defender o direito à vida fazendo uso da morte? Isso não é contraditório? Sem me aprofundar muito nos incisos que completam o sentido do artigo 5º, posso dizer que nosso ordenamento jurídico garante, em tese, condições para que todos nós possamos viver bem, em paz. Existem órgãos competentes, alguns dotados do uso de força, que deve ser justificada, que são instituídos legalmente para criar condições para que cada um desses direitos garantidos se efetive. Mesmo que existam falhas diversas, inúmeras falhas, em muitos braços desse sistema (os julgamentos tardios, a policia mal equipada, ruas mal iluminadas que propiciam a ação de gente de má-fé, presídios mal estruturados, etc.), não cabe ao cidadão, por mais revoltado que ele esteja, por maior sofrimento pelo qual ele tenha passado, privar qualquer pessoa do seu direito à vida, à liberdade, à defesa. Não cabe ao “cidadão de bem” fazer justiça com as próprias mãos.
Infelizmente, não apenas serviços públicos que atuam na punição dos criminosos não são completamente eficientes. É sabido por nós que a educação, nos seus moldes presentes, não consegue formar pessoas conscientes do seu papel social, nem consegue inserir, de forma plena, crianças, adolescentes e jovens em discussões que visem criar possibilidades para a construção de uma sociedade melhor. Temos políticas reduzidas de geração de emprego e renda, normalmente imediatistas, que desconsideram a necessidade de enraizamento de fatores que, em longo prazo, permitirão que haja o crescimento das atividades econômicas. Se assim nós estamos mal, imagine se incluirmos o fator sustentabilidade, ou seja, o uso dos recursos naturais de forma equilibrada que permitirá às futuras gerações não sofrerem com a sua falta. O Brasil é um dos países em que há maior desigualdade social e má distribuição de renda, mesmo que as coisas tenham melhorado por aqui. Sabemos também que o serviço de assistência à saúde não atende às necessidades de todos aqueles que não têm recursos para tratar-se em estabelecimentos particulares. Muitos outros serviços prestados pelos poderes públicos são deficientes. Além disso, estamos num período em que há forte crise de valores... Consumismo desenfreado, tecnologias que dominam o homem em vez de simplesmente facilitar sua vida, corrupção, reality shows como o Big Brother, e uma porção de outros programas e músicas de gosto que pode ser considerado duvidoso... Em essência, há um desrespeito à condição humana, ao amor, à confiança, à amizade e à cooperação entre os indivíduos.
O que esperar de uma sociedade com todas essas características?
Voltando ao assunto principal. Muito poderia ser evitado se os investimentos estatais fossem intensos na formação de um povo bom, focado, entusiasmado, incentivado a ser sempre melhor pela coletividade, não de forma individualista. Muito seria evitado se tivéssemos acesso a serviços de boa qualidade. Há falhas na prevenção do crime. Há falhas na punição do crime e no restabelecimento da coesão social, ou da ordem.
O que cabe, então, a pessoas como eu e você, leitor?
Primeiramente, devemos repensar nossas atitudes. Um ponto interessante da discussão iniciada no meu post no Facebook diz respeito ao nosso jeitinho brasileiro de cada dia. Quem nunca, honestamente, fez isso ou aquilo não pensando em ganhos sociais, mas em ganhos pessoais? Antes de citar um exemplo, afirmo que eu, Anannandy, não gostaria de manifestar publicamente minha opinião politico-partidária, regionalmente ou municipalmente falando, e que qualquer coisa que eu digo aqui é genérica e não diz respeito ao lado de Zé Ninguém. Na hora de escolher um candidato em época de eleição, infelizmente há eleitores que avaliam se o político fulano de tal deu algo pra casa do eleitor, se favoreceu o eleitor numa entrevista de emprego, se fez isso ou aquilo pelo eleitor numa situação pessoal. Aqui não se pensa se o politico fulano de tal vai, durante seu mandato, trabalhar pelo bem estar do povo que ele representa. Pra piorar, a maioria das pessoas não se interessa em acompanhar sessões da câmara de vereadores ou deputados, por exemplo, para estar ciente das pautas discutidas por aqueles que as representam. O artigo 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro afirma que ninguém se escusa de cumprir a lei alegando que não a conhece. Nós todos precisamos saber dos nossos direitos e dos nossos deveres, das nossas atribuições para que a nossa sociedade possa melhorar. Devemos conhecer nossos representantes, e mobilizarmo-nos para propor e cobrar deles politicas que visem melhorar a nossa qualidade de vida, reduzir as desigualdades, aumentar as oportunidades. Devemos contribuir para que as políticas públicas e os serviços públicos sejam cada vez mais eficientes, que a educação funcione, que a saúde funcione, que cesse a corrupção, que tenhamos geração de emprego e renda, respeito às pessoas e ao meio ambiente, senso de coletividade, menos desigualdade social, menos marginalização. Podemos propor, cobrar e fiscalizar. É legal. É o que cabe a nós".