Há muito tempo uma imagem não me choca e magoa
tanto quanto essa das candidatas a mulata Globeleza, exibidas pela Sharon
Menezes. Mil questões polêmicas e dolorosas vêm à tona diante de uma cena tão
agressiva e violenta. A primeira delas tem a ver com o nosso lugar nas grandes
mídias e a construção de nossa autoestima. A luta pela visibilidade negra é
totalmente legítima e urgente, porém precisamos nos questionar que lugar
queremos ocupar? Ver mulheres expondo seus corpos para avaliação é algo
bastante comum e faz parte da luta feminista combater esse tipo de
"hábito” da nossa mídia. Isso já seria motivo suficiente para execrarmos
essa situação, porém há um agravante, que também coloca mais lenha na fogueira
do feminismo branco e negro, expor mulheres negras dessa forma não nos ofende
apenas por nos sentir meros corpos esvaziados e sem personalidade, essa
situação nos remete a um passado recente quando éramos, de fato, coisas,
criaturas sem alma, cuja única função era reproduzir e dar prazer aos nossos
algozes.
Corpos sem rosto, apenas
bundas e coxas bem torneadas, foi a isso que reduziram as nossas bailarinas, as
bailarinas do samba, artistas da sensualidade e do gingado ancestral e sagrado
trazido de África, marcado em nosso DNA. Era esse talento que deveria ser
avaliado, sua dança, a força de seus corpos, a precisão dos movimento perfeitos
que só uma boa passista consegue alcançar por ter a paixão do samba correndo
nas veias, na ponta do pé. Aqueles que conseguem olhar a nossa cultura com os
olhos apaixonados de quem realmente incorporou sua ancestralidade negra, já
deve ter ficado maravilhado com a beleza, destreza e talento dessas mulheres,
dançarinas formadas nas rodas de samba dos becos e vielas; guetos e favelas da
vida, cujos quadris, pernas e pés são instrumentos que mantêm vivo nosso amor
pela dança, nossos laços com África.
O corpo da mulher negra quando
dança torna-se divino, mas em nossa sociedade racista, com sua limitada
dicotomia entre sagrado e profano não é possível pensar em divindades sensuais e
belas, com desejos e defeitos; em rituais sagrados e alegres, onde as pessoas
se divertem, dançam, cantam, amam e odeiam; isso jamais seria respeitado da
forma que deveria. Por isso mesmo esses corpos serão sempre apenas corpos,
apenas carne, apenas um deleite para os olhos e os desejos de homens brancos
que continuam escolhendo negrinhas para aquecer suas noites solitárias,
negrinhas que rebolam e requebram para seduzí-lo, afinal estão ali pra isso:
agradar seus senhores e enlouquecer suas senhoras de ciúmes.
Somos eternas Negras Fulô e
vemos a ordem escravocrata ser reproduzida em cada comentário grosseiro e
despeitado quanto às nossas belas passistas, quando ouvimos homens brancos
encherem a boca para falar de seus casos amorosos com mulheres negras e suas
infinitas habilidades sexuais, ao mesmo tempo em que ostentam suas boas
senhoras brancas ao lado; também quando vemos nossos irmãos patrocinarem o
vilão. Foi doloroso ver a Sheron Menezes protagonizando a palhaçada, por sua
importância para nossas lutas, por ser uma atriz negra, presente em diversas
produções da maior emissora de televisão do país, ostentando uma belíssima
cabeleira totalmente natural, na lamentável imagem faz às vezes do comerciante
de escravos, comercializando suas irmãs como peças de carne.
As mulatas, que se apropriaram
da denominação terrível e transformaram em um símbolo de sua arte, estão ali
expostas como as criaturas sem alma em que tentaram transformar nossos
ancestrais no passado, estão ali vendo seu talento ser vulgarizado, sua cultura
ser reduzida à farra vulgar da dominação branca incapaz de entender a
importância do nosso carnaval, a intensidade de nossa música e dança, o que há
de sagrado em nossa folia e, consequentemente, em nossos corpos, sensuais,
envolventes e lindos, mas que não é pro seu bico!!!
*Mariana Santos de Assis é
formada em letras e mestranda em linguística aplicada na Unicamp, militante no
Núcleo de Consciência Negra e na Frente Pró-Cotas da Unicamp. Escreve no blog
conversaafiadaca.blogspot.com.br
Fonte: Adital