HÁ IMPASSE EM SER GAY E CRISTÃO? - Revista Camocim

sábado, 14 de dezembro de 2013

HÁ IMPASSE EM SER GAY E CRISTÃO?

Livro da jornalista Marília de Camargo César investiga a relação entre cristãos e a homossexualidade e traz desde pontos de vistas de quem faz leituras fundamentalistas da Bíblia até os liberais da chamada teologia inclusiva


Em tempos onde os embates entre a militância dos direitos de homossexuais e a bancada evangélica no Congresso Nacional se acirram a cada dia, a jornalista Marília de Camargo César decidiu investigar como os cristãos se relacionam com a homoafetividade através dos tempos.

Depois de realizar dezenas de entrevistas com o que lista como “religiosos, pastores, historiadores, teólogos, psicólogos, sociólogos, especialistas da área médica e de ciências humanas, gays, ex-gays, ex-ex-gays, gays ateus, gays cristãos, gays que optaram pela castidade para professar sua fé e opiniões de quem entende que fé tem pouco a ver com orientação sexual”, ela escreveu o livro-reportagem Entre a cruz e o arco-íris, que acaba de ser lançado (leia trecho na página ao lado).

Nesta entrevista exclusiva ao O POVO, por email, Marília fala das dificuldades que enfrentou ao longo da apuração das informações e aponta uma possibilidade de diálogo entre extremos aparentemente tão opostos.

 O POVO – Como surgiu a ideia de investigar as relações entre cristãos e a homossexualidade?

Marília de Camargo César – Procurava um tema para um novo livro quando começaram a chamar minha atenção os constantes embates entre militantes LGBT e evangélicos na mídia. Isso foi bem antes de surgirem no cenário personagens controversos, como o pastor Marco Feliciano. Foi ainda no fim de 2010, na época da candidatura da ex-senadora Marina Silva à Presidência da República, de quem tive a honra de escrever a biografia. Naquela fase, começaram a surgir em minha mente perguntas como: como será que é ser homossexual e evangélico? Será que existem muitos evangélicos gays ou esta é uma contradição em termos? Por que, afinal, as pessoas são gays? Elas nascem assim ou são assim socialmente construídas? Eram perguntas bem básicas e que passaram a me perseguir. A curiosidade por esse universo sobre o qual eu nada conhecia me levou a começar a pesquisar sobre o assunto.

OP – Durante seu processo de apuração do livro-reportagem, qual foi o momento mais difícil e o mais surpreendente?
 Marília – Ouvir relatos de sofrimento nunca é fácil. Um momento surpreendente foi conhecer um a igreja inclusiva no Rio de Janeiro. Eu achava que iria tomar parte em alguma cerimônia festiva e barulhenta e me surpreendi pelo ambiente bastante tradicional que encontrei.

OP – O que, de fato, diz a Bíblia, sobre a homossexualidade?
 Marília - A Bíblia condena explicitamente a prática homossexual. Isso pode ser encontrado em diversas passagens tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. A interpretação das passagens sempre foi clara – a prática homossexual é considerada um pecado. Ocorre que, como lembra o pastor Ricardo Barbosa, o pecado é um conceito teológico, e não sociológico ou antropológico. Diz respeito a Deus, à criação, à crença de que as Escrituras Sagradas são a revelação de Deus aos homens. Alguns tentam enquadrar um conceito como pecado nessas outras categorias. . Alguns teólogos modernos, no entanto, como Jack Rogers, professor emérito do San Francisco Theological Seminary, Mel White e do historiador da Universidade Yale John Boswell (os dois primeiros homossexuais assumidos e o terceiro morto em decorrência da Aids), validaram uma releitura das Escrituras Sagradas na qual as proibições ao ato homossexual são colocadas num contexto histórico. Rogers, por exemplo, afirma ter formado uma nova convicção ao refletir sobre como a Igreja foi mudando de visão a respeito de outras questões morais ao longo dos tempos, revertendo, por exemplo, a proibição de ordenar negros, mulheres e divorciados que se casaram novamente. Essa releitura é combatida ponto por ponto pelos teólogos tradicionais, e é um dos tópicos do livro, que poder servir bem a quem se interessa por teologia.

OP – A senhora consegue enxergar uma ponte possível entre as igrejas inclusivas a homossexuais e as mais fundamentalistas?
 Marília - O espírito da reforma protestante defende o direito ao livre exame das Escrituras e devemos sempre lutar por esse direito. Mesmo discordando da interpretação dada pelos teólogos da linha inclusiva ou afirmativa às passagens bíblicas que tratam da prática homossexual, os tradicionais precisam manter com estes um diálogo respeitoso e amoroso. A ponte entre as duas visões sempre será concretada pelo amor e o tratamento digno entre as partes discordantes.

OP – Alguma autoridade religiosa se recusou a dar entrevistas para seu livro? Poderia dizer quem e quais seriam as perguntas? Qual a justificativa para a recusa?
 Marília - Encontrei resistência por parte de alguns pastores, lideranças respeitadas no universo evangélico, que se recusaram a dar entrevista para o livro por temerem posicionar-se a respeito desse tema, que realmente é muito espinhoso. Confesso que fiquei bastante desapontada com essas recusas, mas faz parte do trabalho ouvir alguns “nãos” de vez em quando. Um deles foi o pastor Silas Malafaia. Esperei bastante para uma entrevista com ele, mas no final ele disse que não teria tempo para me atender pois era um homem muito ocupado.


OP – Há ainda um grande conflito entre a homossexualidade e a religiosidade no Brasil?
 Marília - Não somente a religiosidade cristã, mas outras formas de religiosidade, como o islamismo e o espiritismo kardecista têm dificuldades com esse tema. Um dos capítulos do livro fala do sofrimento dos pais e mães quando seus filhos “saem do armário”. Para acolher essas pessoas, uma pesquisadora da USP, Edith Modesto, fundou a ONG Grupo de Pais de Homossexuais, sem cunho religioso, que tem por objetivo aproximar os pais que em algum momento se distanciaram dos filhos LGBT por não conseguirem lidar com o fato. Esse trabalho, que pode inspirar inclusive as igrejas, recebe pessoas de todos os credos e aquelas sem nenhuma profissão de fé. Segundo a doutora Edith, dentre os pais religiosos, os que conseguem lidar melhor com a homossexualidade dos filhos são os budistas e, em termos, os kardecistas. Segundo ela, isso se deve ao fato de os budistas serem muito solidários e despidos de julgamentos, enquanto os kardecistas consideram a homossexualidade um carma, uma forma de pagar pecados de outras encarnações. De todas as religiões, os que têm mais dificuldade em aceitar seus filhos são os evangélicos e os católicos. E, dentre os evangélicos, segundo Edith, os presbiterianos demonstram ter uma postura mais flexível.

OP – Ao longo deste ano, assistimos no Brasil a um acirramento da tensão entre o movimento pelo reconhecimento dos direitos civis de homossexuais e a ala mais conversadora, digamos assim, da igreja evangélica. A senhora acredita que caminhamos para embates ainda maiores e mais intensos?
 Marília - Sim, acredito que a tensão voltará com força quando voltar à pauta do Congresso Nacional a discussão sobre o direito ao casamento civil homoafetivo. Mesmo que esses debates causem controvérsia e recebam cada vez mais espaço nas páginas dos jornais, o Brasil avança rapidamente as leis que garantem os direitos civis para a minoria LGBT, para descontentamento de boa parte da comunidade evangélica. Nesse sentido, a aprovação da união estável entre casais homossexuais pelo Supremo Tribunal Federal em 2011 é um marco histórico. Em muitos países que aprovaram a união estável, o passo seguinte, e foi só uma questão de tempo, foi instituir também a figura jurídica do casamento gay.


 PERFIL
MARÍLIA DE CAMARGO CÉSAR é jornalista e escritora, autora dos livros Feridos em nome de Deus (2009) e Marina: a vida por uma causa (2010), biografia da ex-senadora e líder ambientalista Marina da Silva. É cristã protestante reformada, casada e mãe de duas filhas.

Serviço

Entre a cruz e o arco-íris

Autora: Marília de Camargo César
Editora: Gutenberg

Páginas: 240

Preço: R$ 29,90

O POVO