Livro da jornalista Marília de
Camargo César investiga a relação entre cristãos e a homossexualidade e traz
desde pontos de vistas de quem faz leituras fundamentalistas da Bíblia até os
liberais da chamada teologia inclusiva
Em tempos onde os embates entre a militância
dos direitos de homossexuais e a bancada evangélica no Congresso Nacional se
acirram a cada dia, a jornalista Marília de Camargo César decidiu investigar
como os cristãos se relacionam com a homoafetividade através dos tempos.
Depois de realizar dezenas de
entrevistas com o que lista como “religiosos, pastores, historiadores,
teólogos, psicólogos, sociólogos, especialistas da área médica e de ciências
humanas, gays, ex-gays, ex-ex-gays, gays ateus, gays cristãos, gays que optaram
pela castidade para professar sua fé e opiniões de quem entende que fé tem
pouco a ver com orientação sexual”, ela escreveu o livro-reportagem Entre a
cruz e o arco-íris, que acaba de ser lançado (leia trecho na página ao lado).
Nesta entrevista exclusiva ao
O POVO, por email, Marília fala das dificuldades que enfrentou ao longo da
apuração das informações e aponta uma possibilidade de diálogo entre extremos
aparentemente tão opostos.
O POVO – Como surgiu a ideia de investigar as
relações entre cristãos e a homossexualidade?
Marília de Camargo César –
Procurava um tema para um novo livro quando começaram a chamar minha atenção os
constantes embates entre militantes LGBT e evangélicos na mídia. Isso foi bem
antes de surgirem no cenário personagens controversos, como o pastor Marco
Feliciano. Foi ainda no fim de 2010, na época da candidatura da ex-senadora
Marina Silva à Presidência da República, de quem tive a honra de escrever a
biografia. Naquela fase, começaram a surgir em minha mente perguntas como: como
será que é ser homossexual e evangélico? Será que existem muitos evangélicos
gays ou esta é uma contradição em termos? Por que, afinal, as pessoas são gays?
Elas nascem assim ou são assim socialmente construídas? Eram perguntas bem
básicas e que passaram a me perseguir. A curiosidade por esse universo sobre o
qual eu nada conhecia me levou a começar a pesquisar sobre o assunto.
OP – Durante seu processo de
apuração do livro-reportagem, qual foi o momento mais difícil e o mais surpreendente?
Marília – Ouvir relatos de
sofrimento nunca é fácil. Um momento surpreendente foi conhecer um a igreja
inclusiva no Rio de Janeiro. Eu achava que iria tomar parte em alguma cerimônia
festiva e barulhenta e me surpreendi pelo ambiente bastante tradicional que
encontrei.
OP – O que, de fato, diz a
Bíblia, sobre a homossexualidade?
Marília - A Bíblia condena
explicitamente a prática homossexual. Isso pode ser encontrado em diversas
passagens tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. A interpretação das
passagens sempre foi clara – a prática homossexual é considerada um pecado.
Ocorre que, como lembra o pastor Ricardo Barbosa, o pecado é um conceito
teológico, e não sociológico ou antropológico. Diz respeito a Deus, à criação,
à crença de que as Escrituras Sagradas são a revelação de Deus aos homens.
Alguns tentam enquadrar um conceito como pecado nessas outras categorias. .
Alguns teólogos modernos, no entanto, como Jack Rogers, professor emérito do
San Francisco Theological Seminary, Mel White e do historiador da Universidade
Yale John Boswell (os dois primeiros homossexuais assumidos e o terceiro morto
em decorrência da Aids), validaram uma releitura das Escrituras Sagradas na
qual as proibições ao ato homossexual são colocadas num contexto histórico.
Rogers, por exemplo, afirma ter formado uma nova convicção ao refletir sobre
como a Igreja foi mudando de visão a respeito de outras questões morais ao
longo dos tempos, revertendo, por exemplo, a proibição de ordenar negros,
mulheres e divorciados que se casaram novamente. Essa releitura é combatida
ponto por ponto pelos teólogos tradicionais, e é um dos tópicos do livro, que
poder servir bem a quem se interessa por teologia.
OP – A senhora consegue
enxergar uma ponte possível entre as igrejas inclusivas a homossexuais e as
mais fundamentalistas?
Marília - O espírito da
reforma protestante defende o direito ao livre exame das Escrituras e devemos
sempre lutar por esse direito. Mesmo discordando da interpretação dada pelos
teólogos da linha inclusiva ou afirmativa às passagens bíblicas que tratam da
prática homossexual, os tradicionais precisam manter com estes um diálogo
respeitoso e amoroso. A ponte entre as duas visões sempre será concretada pelo
amor e o tratamento digno entre as partes discordantes.
OP – Alguma autoridade
religiosa se recusou a dar entrevistas para seu livro? Poderia dizer quem e
quais seriam as perguntas? Qual a justificativa para a recusa?
Marília - Encontrei
resistência por parte de alguns pastores, lideranças respeitadas no universo
evangélico, que se recusaram a dar entrevista para o livro por temerem
posicionar-se a respeito desse tema, que realmente é muito espinhoso. Confesso
que fiquei bastante desapontada com essas recusas, mas faz parte do trabalho
ouvir alguns “nãos” de vez em quando. Um deles foi o pastor Silas Malafaia.
Esperei bastante para uma entrevista com ele, mas no final ele disse que não
teria tempo para me atender pois era um homem muito ocupado.
OP – Há ainda um grande
conflito entre a homossexualidade e a religiosidade no Brasil?
Marília - Não somente a
religiosidade cristã, mas outras formas de religiosidade, como o islamismo e o
espiritismo kardecista têm dificuldades com esse tema. Um dos capítulos do
livro fala do sofrimento dos pais e mães quando seus filhos “saem do armário”.
Para acolher essas pessoas, uma pesquisadora da USP, Edith Modesto, fundou a
ONG Grupo de Pais de Homossexuais, sem cunho religioso, que tem por objetivo
aproximar os pais que em algum momento se distanciaram dos filhos LGBT por não
conseguirem lidar com o fato. Esse trabalho, que pode inspirar inclusive as
igrejas, recebe pessoas de todos os credos e aquelas sem nenhuma profissão de
fé. Segundo a doutora Edith, dentre os pais religiosos, os que conseguem lidar
melhor com a homossexualidade dos filhos são os budistas e, em termos, os
kardecistas. Segundo ela, isso se deve ao fato de os budistas serem muito
solidários e despidos de julgamentos, enquanto os kardecistas consideram a
homossexualidade um carma, uma forma de pagar pecados de outras encarnações. De
todas as religiões, os que têm mais dificuldade em aceitar seus filhos são os
evangélicos e os católicos. E, dentre os evangélicos, segundo Edith, os
presbiterianos demonstram ter uma postura mais flexível.
OP – Ao longo deste ano,
assistimos no Brasil a um acirramento da tensão entre o movimento pelo
reconhecimento dos direitos civis de homossexuais e a ala mais conversadora,
digamos assim, da igreja evangélica. A senhora acredita que caminhamos para
embates ainda maiores e mais intensos?
Marília - Sim, acredito que a
tensão voltará com força quando voltar à pauta do Congresso Nacional a
discussão sobre o direito ao casamento civil homoafetivo. Mesmo que esses
debates causem controvérsia e recebam cada vez mais espaço nas páginas dos
jornais, o Brasil avança rapidamente as leis que garantem os direitos civis
para a minoria LGBT, para descontentamento de boa parte da comunidade
evangélica. Nesse sentido, a aprovação da união estável entre casais
homossexuais pelo Supremo Tribunal Federal em 2011 é um marco histórico. Em
muitos países que aprovaram a união estável, o passo seguinte, e foi só uma
questão de tempo, foi instituir também a figura jurídica do casamento gay.
PERFIL
MARÍLIA DE CAMARGO CÉSAR é jornalista
e escritora, autora dos livros Feridos em nome de Deus (2009) e Marina: a vida
por uma causa (2010), biografia da ex-senadora e líder ambientalista Marina da
Silva. É cristã protestante reformada, casada e mãe de duas filhas.
Serviço
Entre a cruz e o arco-íris
Autora: Marília de Camargo
César
Editora: Gutenberg
Páginas: 240
Preço: R$ 29,90
O POVO