“ A MULHER ERA UM CANGAÇO DE ARRAIA ROÍDO DE TRÊS DIAS PELO SIRI”, MAIS UMA DO POETA SOTERO - Revista Camocim

sábado, 12 de outubro de 2013

“ A MULHER ERA UM CANGAÇO DE ARRAIA ROÍDO DE TRÊS DIAS PELO SIRI”, MAIS UMA DO POETA SOTERO

 Com a chegada da invernia, como é costume consertar-se os telhados, estava o Chico Marcolino, que é carpina dos bons, acompanhado do seu ajudante, o Zé da Zilda, consertando um teto lá nas sumas alturas do segundo andar de uma residência, ali no Bairro de Fátima, quando pelas pancadas das três da tarde, passa a senhora Fulana de Tal (não digo o nome para não dar confusão, isto que dizia o saudoso Gerardo Brito nos Sonoros Pinto Martins, quando veiculava uma “página musical” para alguma donzela já comprometida; isto a mando de um suposto pretendente daquela, que, assim, ficava oculto por aquela artimanha do locutor. Ora, era acabar de dizer aquilo e a confusão estava estabelecida, pois o namorado da cobiçada vinha bufando para tomar satisfações; mas como o GB, assim era conhecido o do microfone, fosse mestre para dissimular um qualquer que fosse, desconversava e o sujeito saía como entrara, isto é, com uma dor de cabeça horrível e uns inchaços pela testa, atestando possível par de chifres! Mas deixemos estas coisas de lado, pois já nem existe o estúdio musical nem está mais entre nós o famoso GB e, assim, melhor voltarmos ao fio da meada. Pois bem, quando aquela senhora se aproximou da casa em que os dois trabalhavam, o carpina, por que aquela fosse despossuída de beleza, de tal sorte que enchia a rua com sua feiúra, teceu um infeliz comentário com seu ajudante, dando conta da feiúra dela; mas bem baixinho, segundo o seu entendimento, de modo que ela não ouvisse nada. Ora, e não é que a mulher, parecendo ter ouvido de tísico, ouviu tudo o que foi dito a respeito dela e, mal chegando em casa, foi logo contando aquilo para o marido, e com aumento, pois quem conta um conto aumenta um ponto, dizem. Tão logo a mulher terminou a sua queixa, o marido desfeiteado por conta da mulher, pegou de um alfange, de uma clavina e da cimitarra, tomando o rumo de onde trabalhavam os que tinham diminuído em beleza a sua deusa. Chegando lá, gritou de baixo: “Quem foi o filho desta e daquela que disse que minha mulher era feia, hein, seu bando de cornos?” Ora, eu havia me esquecido de dizer que o carpina, pelo barulho do serrote e da pua por anos a fio na madeira, era quase deficiente auditivo e não entendeu o que o marido vociferava lá de baixo. Aqui vale salientar que, talvez pela surdez, ele, ao tecer seu comentário a respeito da feia, digo, da mulher, o tenha feito em alto e bom som, pois os moucos tendem a falar alto, mesmo quando pensam que cochicham. Como quer que tenha sido, o certo é que o marido estava feito uma fera e mais se exasperava à medida que o outro não entendia ou fingia não entender o que ele dizia. A certa altura da prosa, ele, já não cabendo em si de tanto ódio, levou a clavina ao rosto, como se fosse atirar. Foi então que o ajudante, apavorado, gritou com desespero no ouvido do mestre, dizendo o porquê da ira do outro. “Vai lá, macho, diz que foi tu quem disse o que disse, senão ele vai me matar também!” A sorte é que eles, prevendo o perigo, deitaram-se por cima dos caibros e, assim deitados, pela própria inclinação do telhado o lá de baixo não tinha como os acertar. Tentar bem que tentou uma, duas, três vezes; mas em vão. Também não pôde fazer uso dos Collins, pois o ajudante, pressentindo o perigo, tratou logo de puxar a escada para cima, de modo que ele não pudesse subir; mas isto seria questão de tempo, pois o da clavina, enraivecido; mas engenhoso, amarrava uns caibros entre si, de modo a fazer uma tosca escada; mas graças a providência divina o pior não aconteceu, pois por ali chegou um cunhado dele e, mesmo a muito custo, o dissuadiu do seu instinto de morte.
Ora, meus amigos, não me parece certo o que disse o carpina; mas, por outro lado, ainda mais errado é o que se propunha a fazer o zeloso marido. Ora, eu, de minha parte, se alguém dissesse uma mentira desta a respeito da minha mulher, a Rogelma, que é uma deusa da beleza, eu deixaria isto por menos, por ser só uma mentira e nada mais; se, ao contrário, fosse feia, também deixaria para lá, por ser uma verdade, embora uma verdade mentirosa, pois não existe nem feio nem bonito, segundo uma fábula do carioca Malba Tahan, ou como dizemos entre nós: A beleza está nos olhos de quem vê!
Mas, aqui para nós, a mulher era um cangaço de arraia roído de três dias pelo siri! (gargalhadas) 

Raimundo Bento Sotero