Com a chegada da invernia, como é costume
consertar-se os telhados, estava o Chico Marcolino, que é carpina dos bons,
acompanhado do seu ajudante, o Zé da Zilda, consertando um teto lá nas sumas
alturas do segundo andar de uma residência, ali no Bairro de Fátima, quando
pelas pancadas das três da tarde, passa a senhora Fulana de Tal (não digo o
nome para não dar confusão, isto que dizia o saudoso Gerardo Brito nos Sonoros
Pinto Martins, quando veiculava uma “página musical” para alguma donzela já
comprometida; isto a mando de um suposto pretendente daquela, que, assim,
ficava oculto por aquela artimanha do locutor. Ora, era acabar de dizer aquilo
e a confusão estava estabelecida, pois o namorado da cobiçada vinha bufando
para tomar satisfações; mas como o GB, assim era conhecido o do microfone,
fosse mestre para dissimular um qualquer que fosse, desconversava e o sujeito
saía como entrara, isto é, com uma dor de cabeça horrível e uns inchaços pela
testa, atestando possível par de chifres! Mas deixemos estas coisas de lado,
pois já nem existe o estúdio musical nem está mais entre nós o famoso GB e,
assim, melhor voltarmos ao fio da meada. Pois bem, quando aquela senhora se
aproximou da casa em que os dois trabalhavam, o carpina, por que aquela fosse
despossuída de beleza, de tal sorte que enchia a rua com sua feiúra, teceu um
infeliz comentário com seu ajudante, dando conta da feiúra dela; mas bem
baixinho, segundo o seu entendimento, de modo que ela não ouvisse nada. Ora, e
não é que a mulher, parecendo ter ouvido de tísico, ouviu tudo o que foi dito a
respeito dela e, mal chegando em casa, foi logo contando aquilo para o marido,
e com aumento, pois quem conta um conto aumenta um ponto, dizem. Tão logo a
mulher terminou a sua queixa, o marido desfeiteado por conta da mulher, pegou
de um alfange, de uma clavina e da cimitarra, tomando o rumo de onde
trabalhavam os que tinham diminuído em beleza a sua deusa. Chegando lá, gritou
de baixo: “Quem foi o filho desta e daquela que disse que minha mulher era
feia, hein, seu bando de cornos?” Ora, eu havia me esquecido de dizer que o
carpina, pelo barulho do serrote e da pua por anos a fio na madeira, era quase
deficiente auditivo e não entendeu o que o marido vociferava lá de baixo. Aqui
vale salientar que, talvez pela surdez, ele, ao tecer seu comentário a respeito
da feia, digo, da mulher, o tenha feito em alto e bom som, pois os moucos
tendem a falar alto, mesmo quando pensam que cochicham. Como quer que tenha
sido, o certo é que o marido estava feito uma fera e mais se exasperava à
medida que o outro não entendia ou fingia não entender o que ele dizia. A certa
altura da prosa, ele, já não cabendo em si de tanto ódio, levou a clavina ao
rosto, como se fosse atirar. Foi então que o ajudante, apavorado, gritou com
desespero no ouvido do mestre, dizendo o porquê da ira do outro. “Vai lá,
macho, diz que foi tu quem disse o que disse, senão ele vai me matar também!” A
sorte é que eles, prevendo o perigo, deitaram-se por cima dos caibros e, assim
deitados, pela própria inclinação do telhado o lá de baixo não tinha como os
acertar. Tentar bem que tentou uma, duas, três vezes; mas em vão. Também não
pôde fazer uso dos Collins, pois o ajudante, pressentindo o perigo, tratou logo
de puxar a escada para cima, de modo que ele não pudesse subir; mas isto seria
questão de tempo, pois o da clavina, enraivecido; mas engenhoso, amarrava uns
caibros entre si, de modo a fazer uma tosca escada; mas graças a providência
divina o pior não aconteceu, pois por ali chegou um cunhado dele e, mesmo a
muito custo, o dissuadiu do seu instinto de morte.
Ora, meus amigos, não me
parece certo o que disse o carpina; mas, por outro lado, ainda mais errado é o
que se propunha a fazer o zeloso marido. Ora, eu, de minha parte, se alguém
dissesse uma mentira desta a respeito da minha mulher, a Rogelma, que é uma
deusa da beleza, eu deixaria isto por menos, por ser só uma mentira e nada
mais; se, ao contrário, fosse feia, também deixaria para lá, por ser uma
verdade, embora uma verdade mentirosa, pois não existe nem feio nem bonito,
segundo uma fábula do carioca Malba Tahan, ou como dizemos entre nós: A beleza
está nos olhos de quem vê!
Mas, aqui para nós, a mulher
era um cangaço de arraia roído de três dias pelo siri! (gargalhadas)
Raimundo Bento Sotero