O texto é longo, porém, em tempos de desentendimentos sociais, eu diria, necessário.
"Alguns ficam confusos com a
minha posição quanto à religião. Alguns chegam a pensar que sou católico e
quando digo que sou ateu se assustam. Isto porque não me engajo em militância
ateísta, não me identifico com os “neo-ateus” e acho a antirreligião uma
babaquice que vai contra os princípios de liberdade individual ao culto, à
associação e à expressão....
Tive minha fase de contestação
da religião e de “neo-ateísmo”, mas nunca tive uma oposição forte à “rebeldia”
inicial por causa da educação que minha mãe, descrente, me deu. Por isso acho
muito infantil o modo como se portam hoje ateus de mais de 20 anos na cara que
parecem pré-adolescentes com oxiúros. Por isso listei dez razões para que você,
ateu level 1, não seja um neo-ateu por muito tempo.
1. Ateísmo não é diploma
Descobriu que é ateu ontem?
Ótimo. Não precisa usar as palavras “lógica”, “razão” e “argumento” cinco vezes
por frase. O fato de ser ateu não te faz mais inteligente, melhor informado ou
maior conhecedor da ciência. Na verdade, grandes gênios da humanidade foram
crentes até o final de suas vidas e grandes nomes da ciência hoje continuam sendo
crentes. Considere que ateísmo, apesar de não ser recente, é uma filosofia
minoritária entre as pessoas. A maioria das pessoas é crente e não deixa de
desenvolver habilidades fantásticas por causa disso.
O grande problema dos
neo-ateus é justamente o proselitismo. A maioria está recém se descobrindo como
ateu e precisa se afirmar de um jeito ou de outro. O resultado é um púbere
falando besteira e ofendendo os outros porque acha que é um iluminado que descobriu
a verdade.
2. Religião não é doença
O neo-ateu acha que foi
milagrosamente curado, e acredita que deve curar os outros “doentes”. Insiste
que a religião é um mal no mundo e que ela precisa ser eliminada. Na sua
cabeça, a religião é instrumento de poder, de dominação, de enganação, etc.
Iludido pela novidade, embarca
numa verdadeira pregação do Devangelho. É um dever moral fazer o maior número
possível de desconversões.
Não sabe portanto que a
religião nunca foi o mal, e sim a repressão religiosa. Repressão religiosa é
feita de religião para religião e de ideologias políticas para religiões em
geral. Quando sustentamos que a religião é um mal a ser eliminado, estamos
perpetuando justamente a repressão religiosa.
3. Ignorância não é força
Caindo na ilusão de que tudo
que é contra a religião é “científico”, o neo-ateu pensa que crer em figuras do
“ateísmo” é um tipo de ceticismo ou livre pensamento. Repete ipsis literis as
besteiras de Sam Harris e Richard Dawkins sem considerar se estas pessoas estão
habilitadas para discutir o assunto ou se o que dizem é lógico e faz sentido.
Acreditar no que diz Dawkins sobre Teologia é como acreditar no que diz Craig
sobre zoologia. Ambos podem emitir opinião sobre o assunto, mas nenhum está
qualificado para discuti-lo com propriedade. Dawkins é um excelente zoólogo, e
só isso.
Para deixar o estado de
credulidade do neo-ateu, é necessário que ele entenda que o ateísmo é uma
postura filosófica como as outras, que precisa ser estudada se pretende levá-la
à sério. Não se pode discutir religião sem entender religião. E entendê-las não
através de esteriótipos desenhados por aqueles que as atacam. Sem conhecer os
argumentos do outro lado, jamais se pode ter segurança e convicção da própria
posição, mas sim uma opinião escorada na credulidade, como a de um crente
fanático sem conhecimento da própria
doutrina religiosa.
É mais fácil ler críticas
contundentes à religião em autores que escreveram há séculos como Locke, Paine
e Mill, ou até religiosos como Erasmo de Roterdã, do que nos livros de comédia
e ficção de nova seita antiteísta.
4. Antiteísmo não é ateísmo
Chame como quiser:
neo-ateísmo, ateísmo militante, humanismo secular, fundamentalismo ateu, etc.
Antiteísmo não é ateísmo. Ateísmo, com prefixo -a-, indica uma ausência:
ausência de crença, de religião, de deus ou deuses. Um ateu não acredita que
deuses existem (ou acredita que deuses não existem, dá na mesma), e não segue
religião teísta alguma. É só isso. Ateísmo acaba aí.
O único mandamento ateu: não seja um c*zão.
Hoje em dia pouca gente pensa
nisso, mas um ateu poderia acreditar em espíritos, forças sobrenaturais e
planos não-materiais. É suficiente para ser ateu que não se acredite em
divindades. Nada impede a existência de um espiritismo ateu, por exemplo. De fato,
existem até religiões ateístas como o positivismo (religião da humanidade), o
humanismo, a cientologia, etc.
Antiteísmo é oposição às
religiões teístas e ao pensamento teísta. Na prática, significa que o
antiteísta acredita que a religião e a crença em deuses são um mal a ser
eliminado. O antiteísmo é portanto tão intrusivo quanto uma religião
expansionista, já que busca a conversão. Ou, neste caso, a “desconversão”.
5. Se fosse para pregar, eu seria crente
O antiteísta não se contenta
em pregar que a religião é nociva e (des)converter os outros para a sua seita.
O neo-ateu também se congrega em igrejas, virtuais ou não. Eles se juntam em
congregações como a ATEA, a Liga Humanista Secular, etc.
Se fosse para pregar, ter
liturgia, ir numa congregação e ter discurso oficial, eu seria crente. Qual o
sentido de se congregar em torno de uma descrença? É como juntar pessoas num
clube de não-torcedores do Flamengo, ou numa associação de não-moradores da
Vila Cruzeiro. É óbvio que as associações se dão em razão de características
comuns e positivas: torcedores do Flamengo e moradores da Vila Cruzeiro.
Anticomunistas se associam, antifascistas se associam, anticapitalistas se
associam. No caso dos neo-ateus, são antiteístas e antirreligiosos se
associando em prol de uma doutrina política antirreligiosa.
O que não falta é religião
ateísta. Desde as mais respeitáveis e milenares como Budismo, Taoísmo e
Confucianismo às mais recentes e cientificistas Religião da Humanidade, Culto
da Razão, Cientologia, etc. É inevitável: quanto mais ateus dogmatizam o
próprio pensamento para combater religiões e quanto mais incentivam o “ateísmo
organizado”, mais os “ateus” entram em esquemas prontos que formatam seu
pensamento numa doutrina religiosa. Se religião fosse um problema, antiteísmo
não teria virado uma.
6. O antiteísmo tem um passado imundo (e um presente também)
Toda perseguição religiosa
trouxe efeitos devastadores quando tomou o poder político. Da Guerra Cristera
provocada por Plutarco Elías Calles no México aos verdadeiros massacres
cometidos na União Soviética, na China, na Albânia e em todo lugar onde o
comunismo se instalou ou tentou se instalar, podemos tirar a lição de que o
sectarismo ateu não é menos nocivo que o religioso.
Se neo-ateus acham que podem
julgar cristãos por causa das Cruzadas ou da Inquisição, desconhecem que a
militância ateísta fez coisa semelhante em lugares onde crentes foram fuzilados
e a religião, proibida.
Palden Choetso, monja budista,
suicida-se por auto-imolação em protesto contra a repressão religiosa e a
ocupação chinesa no Tibet. Protestos deste tipo são frequentes, mas pouco
reportados pela mídia.
É difícil calcular quantas
foram as mortes decorrentes da repressão à religião. Mas podemos citar alguns
eventos desagradáveis decorrentes dela:
A Guerra Cristera provocada
por Plutarco Elías Calles, que matou mais de 30 mil cristeros e 50 mil soldados
federais.
O massacre de religiosos pelos
republicanos espanhóis durante a Guerra Civil Espanhola que totaliza umas 6,8
mil pessoas.
Campanhas de “reeducação” e
campanhas “anti-reacionárias” do Partido Comunista Chinês durante o governo de
Mao Zedong. Um exemplo é a Revolução Cultural que matou cerca de 500 mil
pessoas, o que inclui muitos religiosos já que a China era e é um Estado Ateu.
Os expurgos socialistas na
Mongólia para erradicar o Lamaísmo, que custaram entre 30 mil e 35 mil vidas.
A repressão religiosa do
governo de Enver Hoxha na Albânia.
A repressão comunista no
Camboja, que mandou para os campos da morte
Chams (cambojanos muçulmanos), cambojanos cristãos e monges budistas.
As campanhas antirreligiosas
da União Soviética de 1917-1921, de 1921-1928, 1928-1941, de 1958-1964, e de
1970-1990, cujo número de vítimas não é conhecido.
A completa repressão religiosa
na Coréia do Norte, que impôs o culto ateísta ao Estado (Juche).
A repressão religiosa por
Estados Ateus como a República Popular da China, o Laos, o Vietnã, e a Coréia
do Norte, que resiste até hoje.
7. O neo-ateísmo desrespeita a liberdade de pensamento
Longe de ser um grupo aberto
ao diálogo, os neo-ateus são combativos e desrespeitosos. Não admitem diálogo:
para eles a religião é uma enganação, e um mal a ser extirpado.
Nesta posição, sua reação é o
fechamento ao debate. As verdades estão evidentes e as peças estão dispostas no
tabuleiro: de um lado os religiosos fanáticos, do outro os iluminados
defensores da razão e da ciência. Incapaz de um diálogo interreligioso, ele
resume sua linguagem à mera afronta à doutrina religiosa que escarnece. Não
dialoga: xinga; não argumenta: faz deboche; não aceita negociação: ou você está
do lado da razão ou você é um crente que precisa ser desiludido.
Não havendo espaço para
diálogo, o objetivo dele é um só: calar a boca dos crentes. Ele quer que
retirem as cruzes dos tribunais, que retirem a palavra “Deus” da Constituição e
das notas de real, que se acabe com o ensino religioso, que se proíba os
crentes de manifestar publicamente a fé ou divulgar as suas opiniões e a sua
ideologia na mídia. Combatem, assim, não só a liberdade de culto como também a
liberdade de expressão.
8. Darwin não é deus e ciência
não é religião
A mentira mais repetida por e
para neo-ateus é que religião é inimiga da ciência. É claro, se você fingir que
a comunidade científica ocidental não nasceu dentro da Igreja Católica e que
todo o sistema universitário ocidental não é baseado num modelo acadêmico
estabelecido pela Igreja.
Outra idiotice é militar pelo
evolucionismo como se fosse a corporificação da ciência e da razão. Uma teoria
científica, válida hoje, pode estar refutada amanhã. O que farão se o
evolucionismo for posto em cheque? Admitirão que militavam por uma mentira ou
vão cair na real, que não existem “fatos científicos”, verdades incontestáveis?
Outra é atacar ad nauseam o criacionismo como se todo cristão fizesse
interpretação literal do Gênesis, e esquecendo que quem formulou a teoria do
Big Bang era um padre. Um indivíduo pode perfeitamente ser crente e lidar com
ciências sem problemas.
O pior não é ver alguém
militar pelo “evolucionismo”, mas ver que o mesmo sujeito não entende a Teoria
da Evolução: diz que “animais passam por mutações” ou que “o homem descende do
macaco”. Para piorar, louva este ou aquele cientista e sua teoria como se
fossem santos e padroeiros da ciência. Darwin, Newton e Einstein foram
importantes, mas fazer desta pessoas e de deturpações de suas teorias uma
bandeira de militância é idiota, deturpa a visão das pessoas da ciência,
tornando-a cada vez mais impopular entre crentes.
Por fim, o cientificismo. A
idéia idiota de derivar padrões morais da ciência. A ciência, assim como a
filosofia e a religião, tem um escopo, um campo limitado de atuação. Ciência
serve para descobrirmos coisas novas e acumular conhecimento, e não ditar como
devemos empregar o conhecimento. Podemos usar energia nuclear para iluminar
cidades inteiras ou para fazer armas de destruição em massa. O que determina o
que fazer com os avanços científicos depende de um padrão moral extrínseco à
ciência: vem de uma doutrina política, filosófica ou religiosa.
9. O ateísmo não propõe coisa alguma
Você propõe alguma coisa? Fale
por si. O ateísmo não propõe coisa alguma. Ateísmo é não acreditar em deuses e
religiões teístas. Ponto. Qualquer coisa além disso é parte de uma doutrina,
ideologia e filosofia pessoal sua. Não existe medida científica para o bem e o
mal e não vai ser você quem vai inventar.
Se você defende a política X
ou Y, você fala de um conjunto de idéias políticas suas. Ateísmo é outra coisa.
10. O antiteísmo sabota a causa da razão.
Qual o sentido de difamar algo
que não existe? Que tipo de pessoa escreve livros, faz vídeos e dá palestras
para criticar algo que não existe? Das duas uma: ou esta pessoa quer ganhar
dinheiro de trouxas, ou ela está conduzindo uma cruzada contra a lógica. Você
conhece alguém que escreve livros ou faz vídeos para contestar a existência de
duendes, de fadas do dente, do coelhinho da páscoa ou do papai noel? Então
porque seria menos ridículo alguém que escreve para contestar a existência de
deuses ou espíritos?
Dentre os males causados pelo
neo-ateísmo, podemos mencionar:
Emperra o diálogo
interreligioso.
Inculca nos crentes o ódio
pela ciência, em vez de estimular a sua apreciação.
Deturpa as ciências pela
propagação de versões caricaturizadas de teorias científicas.
Cria um tumulto em torno de um
ente que não existe, provocando mais militância de ambos os lados.
Desvia o foco do estudo das
ciências de questões mais proveitosas para questões que tem pouca aplicação
prática.
Pseudoceticismo: fomenta a
blindagem cerebral ao aceitar credulamente qualquer coisa com o rótulo de
“científica” e ao rejeitar qualquer coisa com o rótulo de “religiosa”.
Dogmafobia. O medo de ter
princípios morais e fazer o julgamento
da realidade com base em princípios, em vez de fins. O resultado é que o
sujeito ataca qualquer coisa “moral” e defenderá qualquer coisa imoral que
tenha a pecha de “científica”.
Tornar-se um pé no saco. O
sujeito começa a evitar igrejas, grupos de amigos, foge quando alguém reza
antes do almoço, critica até a avó porque ela lê a Bíblia, quer discutir com
pastor, etc.
Conclusão:
Se você ainda está na fase de
contestar os dogmas, mitos e tradições religiosas da sua sociedade para
afirmar-se, esqueça esta militância. O ateísmo não é um fenômeno novo, não apresenta
nenhum tipo de avanço ou progresso da sociedade moderna. É mais provável que
ele seja anterior a qualquer religião que tenha existido, e é portanto mais
antigo do que qualquer tradição religiosa. Não se preocupe em desconverter as
pessoas, preocupe-se em transmitir os valores que tornam a sociedade melhor: a
tolerância, o diálogo, a liberdade individual, a liberdade de expressão. As
verdades, “científicas” ou não, cedo ou tarde vão sendo descobertas"