Enquanto o âncora do Jornal Nacional fez 21
intervenções na fala da presidenta, só interpelou seus adversários em cinco
ocasiões cada um. A palavra “corrupção” foi mencionada pelos apresentadores dez
vezes na entrevista com a petista, três na do tucano e nenhuma na participação
do pessebista
O diabo mora nos detalhes, diz um
famoso provérbio. No entanto, às vezes não é preciso descer tanto a eles para
verificar a validade de uma determinada situação. No caso das entrevistas
feitas com os presidenciáveis no Jornal Nacional até ontem (18), rever os
programas e verificar quais perguntas foram feitas a cada um e como se
comportaram os entrevistadores pode revelar muito sobre o direcionamento do
programa e da Rede Globo.
A postura e a forma incisiva como
são feitas as questões, muitas vezes beirando a falta de educação ou simples
pirraça, como nas ocasiões em que o entrevistador aparenta não gostar da
resposta dada, pode passar a impressão de que William Bonner e Patrícia Poeta
são “imparciais” e “apertam” os entrevistados de forma indistinta. No entanto,
os temas e até mesmo as palavras mostram que a igualdade de tratamento passou
longe.
Na entrevista de ontem, o tema
central que ocupou quase metade da entrevista (7 minutos e 16 segundos dos 15
minutos e 58 totais) foi corrupção. Desde a pergunta inicial de Bonner, que
enumerou sete ministérios e uma estatal onde teriam havido “escândalos”,
durante um minuto e sete segundos, até a pergunta de Patrícia Poeta sobre
saúde, que se iniciou com um “Corrupção não é o único problema”, o termo foi
dito dez vezes pela dupla do telejornal, sete somente na primeira questão. Na
entrevista com Aécio, a palavra apareceu somente em três oportunidades em uma
pergunta de Poeta – em uma das vezes, relacionada ao PT –, e nenhuma na
participação de Eduardo Campos.
Uma resposta dada por Aécio na
primeira entrevista, aliás, parece ter “pautado” uma das perguntas feitas por
Bonner ontem a Dilma. Veja a semelhança de conceitos entre ambos:
Patrícia Poeta: Candidato, o seu
partido é crítico ferrenho de casos de corrupção que envolvem o PT. Mas o seu
partido também é acusado de envolvimento em escândalos graves de corrupção. (…)
Por que o eleitor iria acreditar que exista diferença entre os dois partidos
quando o assunto é esse: corrupção?
Aécio Neves: Patrícia, eu acho
que a diferença é enorme. Porque no caso do PT houve uma condenação pela mais
alta corte brasileira. Estão presos líderes do partido, tesoureiros do partido,
pessoas que tinham postos de destaque na administração federal, por denúncia de
corrupção. (…) O que eu posso garantir é que, no caso do PSDB, se eventualmente
alguém for condenado, não será, como foi no PT, tratado como herói nacional.
Porque isso deseduca.
Nos grifos nossos da resposta
acima estão os mesmos conceitos de “grupo de elite”, corrupto do PT e
“tratamento de herói” dado pela legenda, embutidos na questão de Bonner sobre o
tema feita ontem:
William Bonner: Então, me deixa
agora perguntar à senhora. E em relação a seu partido? O seu partido teve um
grupo de elite de pessoas corruptas, comprovadamente corruptas, eu digo isso
porque foram julgadas, condenadas e mandadas para a prisão pela mais alta corte
do Judiciário brasileiro. Eram corruptos. E o seu partido tratou esses
condenados por corrupção como guerreiros, como vítimas, como pessoas que não
mereciam esse tratamento, vítimas de injustiça. A pergunta que eu lhe faço:
isso não é ser condescendente com a corrupção, candidata?
Para não haver dúvidas, o âncora
do JN chama o que ele considera um grupo de elite petista de corrupto três
vezes, para o telespectador, que um dia ele julgou ser Homer Simpson, entender
bem. Um comportamento similar ao de qualquer apresentador de telejornal
policial.
O consenso dos “economistas” do JN
A certa altura da entrevista de
ontem, Bonner reclamou com a presidenta: “Nós vamos falar de economia”,
cortando a fala da petista e mesmo sua colega de bancada para fazer seu
questionamento a respeito. Embora parecesse estar preocupado com a falta de
tempo que restaria ao assunto, economia foi prioridade de fato nas duas
entrevista anteriores do JN. Diferentemente do que ocorreu com Dilma, este foi
o assunto que abriu as conversas com os presidenciáveis tucano e pessebista.
Sempre com diagnósticos sombrios
sobre o panorama econômico do país, os jornalistas da Globo quase exigiram dos
outros dois candidatos compromissos com o corte de gastos públicos, adiantando
a quem assistia que “medidas impopulares” teriam que ser tomadas. Para Aécio, a
pergunta incluiu o trecho:
“(…) economistas que concordam
com o seu diagnóstico para a economia brasileira dizem que essas medidas que o
senhor tem anunciado não bastam, elas não seriam suficientes para resolver. Que
seria necessário que o governo fizesse um corte profundo de gastos. Que seria
necessário que o governo também eliminasse a defasagem de tarifas públicas como
preço da gasolina e energia elétrica. A questão é a seguinte: o senhor não vai
fazer essas medidas que os economistas defendem? Ou o senhor está procurando
não mencionar essas medidas, porque elas são impopulares?”
Para Eduardo Campos, Patrícia
Poeta não citou os “economistas que concordam com o senhor”, mas o termo
“economistas” foi colocado de forma genérica, como se todos concordassem com a
retração de gastos públicos:
“Candidato, vamos começar a
entrevista com a lista de algumas promessas que o senhor já fez, eu anotei
algumas delas: escola em tempo integral, passe livre para estudantes do ensino
público, aumento dos investimentos em saúde para 10% das receitas da União,
manutenção do poder de compra do salário mínimo e multiplicar por 10 o
orçamento da segurança. Tudo isso significa aumento dos gastos públicos. Mas o
senhor também promete baixar a inflação atual para 4% em 2016, chegando até 3%
até 2019. E isso, segundo economistas, exige cortar pesadamente gastos
públicos. Ou seja, essas promessas se chocam, se batem. Qual delas o senhor não
vai cumprir?
Quando falou com Dilma a respeito
de economia, Bonner citou “analistas”, de novo de forma genérica, para
justificar sua avaliação embutida na questão: “(…) os analistas dizem que 2015,
ano que vem, vai ser um ano difícil, um ano de acertos de casa, que é preciso
arrumar a economia brasileira e portanto isso vai impor algum sacrifício, vai
ser um ano duro”.
Não há problema em um jornal ou
veículo ter determinadas posições a respeito de temas diversos, como a condução
da política econômica por parte de um governo. Seria ótimo, aliás, que todas as
posturas fossem transparentes. No entanto, em uma série de entrevistas na qual
se pretende dar condições de igualdade para todos, tocar logo de início em um
assunto no qual o diagnóstico do entrevistador e do entrevistado parece ser
similar, além de um conceito preestabelecido, dá vantagem óbvia a quem concorda
com a tese. E deixa o telespectador sem margem para julgar que aquilo está
longe de ser verdade inconteste, como a postura do perguntador sugere.
Tempo e intervenções
Mas o que talvez tenha saltado
aos olhos na entrevista de ontem, comparando-se com as outras duas, foi a
postura de William Bonner. Ele realizou pelo menos 21 intervenções em respostas
de Dilma, ou interrompendo a fala da candidata ou voltando à questão,
insatisfeito com a resposta dada. Na entrevista com Campos, o âncora fez isso
cinco vezes, mesmo número de ocorrências na conversa com Aécio.
Também impressionou o ímpeto em
acuar Dilma, se sobrepondo muitas vezes a Poeta. Bonner tomou ou tentou tomar a
palavra durante 3 minutos e 53 segundos, reservando meros 47 segundos a sua
colega de trabalho (números aproximados). Na participação de Aécio no JN,
Bonner falou durante 3 minutos e 9 segundos, e Patrícia Poeta durante um minuto
e 46, mais que o dobro de ontem. Com Eduardo Campos, a distorção foi ainda
maior: o âncora ocupou 2 minutos e 16 segundos, enquanto a jornalista ocupou 2
minutos e 8, quase o mesmo tempo que o companheiro de bancada. Na entrevista,
Bonner deixou de ser entrevistador para se investir de sua outra função, a de
editor-chefe. No caso específico, mais chefe que editor.
O modelo de entrevista
Millôr Fernandes dizia que “o
xadrez é um jogo chinês que aumenta a capacidade de jogar xadrez”. O modelo de
entrevistas do Jornal Nacional é quase isso. Na prática, testa a capacidade do
candidato de se portar em uma entrevista do programa. Pode ser útil sim, já que
um candidato pode cometer um ato falho, se trair em alguma resposta, passar uma
insegurança estranha ao eleitor etc. Mas está longe de elevar o nível do debate
político.
E em geral são os jornalistas,
justamente, que reclamam do vazio das propostas, dos programas, de posições
pouca convictas dos candidatos. Mas entrevistas como estas, nas quais o
entrevistador se traveste de inquisidor e desfila cobranças como a de que um
candidato “se cerque de gente honesta”, como se este fosse o problema central
da corrupção, contribuem muito pouco para que o embate político saia do raso.